Uma das criadoras do projeto Biblioteca Caminhos da Leitura, que promove a leitura em espaços que vão do cemitério à maternidade, a educadora social ajuda a mudar a realidade de Parelheiros, um dos lugares com os Índices de Desenvolvimento Humano mais baixos de São Paulo. “O meu lugar no mundo como mulher negra, que vem de região periférica, é estar o tempo todo pensando em transformar”
- GRAZIELA SALOMÃO, COLABORAÇÃO PARA A MARIE CLAIRE, DO HOME OFFICE
“Gerar vida por meio da palavra”. Imagine um projeto que faz com que a leitura aconteça dentro de um cemitério e, a partir dali, estabeleça um ciclo de vida e de transformação social. Foi isso que a Biblioteca Caminhos da Leitura, criada há 11 anos em Parelheiros, periferia da zona sul de São Paulo, fez pelos jovens. Foi na casa do coveiro, único lugar disponível no bairro, que adolescentes e livros se instalaram. As histórias de vida, esperança e força se estenderam para além dos muros do cemitério, chegando na maternidade, nas ruas e nos comércios locais. Uma das principais responsáveis por isso é Bel Santos Mayer, educadora e coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), que está na área social desde os 14 anos quando criou, junto com amigos, uma casa de acolhida para meninas em Sapopemba, região leste da cidade, onde morava.
Vinda de uma família de migrantes nordestinos, mãe doméstica e pai metalúrgico, foi a primeira a se formar na família. Fez Matemática porque o pai gostava e, naquele tempo, a área estava ligada ao sucesso. Mas sempre foi o amor pela alfabetização e pelas letras que a moveu. “O que me pegou foi esse lugar da literatura e de como a educação não é apenas uma mudança individual. Ela muda a trajetória da vida de uma família e de uma comunidade”. Aos 53 anos, depois de vencer um câncer, tem a certeza de que o “amadurecimento traz uma tranquilidade e a vontade de seguir aprendiz”.
Como uma das gestoras da Rede LiteraSampa, formada por bibliotecas comunitárias espalhadas pelas periferias de São Paulo, Guarulhos e Mauá, ela vê a literatura com uma ferramenta importante contra as desigualdades sociais. Foi o que aconteceu durante a pandemia, quando a ação dos 4 Ps – Pão, Proteção, Poesia e Plantio – mudou a vida de mais de 1.400 famílias proporcionando alimentação, produtos de higiene e máscaras, livros e hortas comunitárias. “Esses 4 Ps foram puxados pela literatura. Por isso, tenho esperança”, afirma. Outra ação que extrapolou as paredes da biblioteca é o projeto Amara, uma cozinha de alimentação saudável. “Começou pelos altos índices de pessoas diabéticas. Poderíamos falar que não tinha nada a ver conosco porque não somos da saúde, mas precisamos de gente viva para ler”, diz. A ideia de mudar os lanchinhos da biblioteca deu certo e virou um empreendimento social. “As mulheres começaram a batizar seus cardápios ligados a temas literários. O melhor café da manhã delas chama “Espetáculo deslumbrante para Carolina” porque elas escutaram a história da [escritora] Carolina Maria de Jesus que, quando passava fome, dizia que a fome era amarela. Por isso, cada vez que tinha quatro ingredientes na mesa ela chamava de espetáculo”.
Confira a entrevista com a educadora:
Marie Claire: Quando se deu conta da transformação que a Educação trouxe para sua vida e de sua família?
Bel Santos Mayer: A ficha vai caindo aos poucos. Encontrei Paulo Freire pela primeira vez na minha vida na PUC e chorei. Pedi para beijar a mão dele. Já tinha lido a “Pedagogia do Oprimido” e estava ali diante daquele homem. Quando contei para minha mãe que tinha encontrado o professor que escrevia as coisas mais importantes que aprendi, ela falou apenas “que bom”, porque não sabia a dimensão daquilo. Com o tempo meus pais começaram a compreender o que era ser a professora do bairro, viam as crianças lotarem a porta de casa esperando para irmos juntos para a escola, entenderam a importância que eu tinha na trajetória dos alunos quando me colocaram ao lado de Deus como a pessoa que tinha influenciado a vida deles. Hoje, quando minha mãe me vê falando dela, fica toda orgulhosa e fala “nunca imaginei que teria uma filha tão importante e que daria importância para as coisas que aprendeu comigo”. Tenho muita gratidão pelo que meus pais fizeram por mim e por todas as ancestrais que vieram antes, abrindo esse caminho.
MC: Como vocês lidam com essa tentativa de interrupção em vários projetos sociais e na própria Educação?
BSM: É um sentimento de quase desespero. Nós que somos ativistas da leitura e que estamos há décadas com jovens leitores, fazendo essa quebra de monopólio do saber e construindo uma outra geografia na cidade, sentimos muita dor ao vermos no poder uma lógica de destruição das nossas existências. Um exemplo absurdo é essa PL da taxação dos livros. Quem faz uma proposta dessa sabe o que acontece com os livros nas mãos dos filhos de trabalhadores e trabalhadoras. Vivo no Brasil que lê e, nele, construímos um caminho do qual não vamos abrir mão. O acesso a livros e à cultura é revolucionário e transformador. A literatura nos faz abrir espaços internos e ocupar espaços externos. Os jovens leitores das bibliotecas comunitárias estão nas universidades, nos conselhos de políticas públicas. Estamos atentos e reagindo a isso, mas sem perder mão de nos acolhermos nas situações mais íntimas.
“O meu lugar no mundo como mulher negra, que vem de região periférica, é estar o tempo todo pensando em transformar””
MC: Já pensou em desistir?
BSM: Nunca, nem de brincadeira. O meu lugar no mundo como mulher negra, que vem de região periférica, é estar o tempo todo pensando em transformar. O que procuro fazer é falar na frente do espelho as coisas que digo para as outras meninas e mulheres que estão ao meu redor. “Para um pouco, se recolha, pensa o que pode fazer para se cuidar mais porque a gente precisa de você por muito tempo”. Também tenho em volta mulheres interessantíssimas que ligam para perguntar como estou, mandam entregar na porta da minha casa o pão de que gosto, flores. Esse Brasil que lê é uma rede de grandes afetos. Uma dimensão da política é cuidarmos das pessoas. É garantir que o lugar que estamos seja de hospitalidade. Precisamos nos importar com as pessoas e com as histórias delas.
MC: Como foi a ideia de criar a biblioteca Caminhos da Leitura dentro de um cemitério em Parelheiros?
BSM: Parelheiros apresentava os piores índices de desenvolvimento humano de São Paulo, como se fosse o pior lugar para se viver. Já a região em que nossa organização está, próxima a Pinheiros, era considerada o melhor lugar. Nenhum lugar é só o melhor ou o pior. Por isso, fomos oferecer o que poderíamos para os jovens e um dos desejos era reabrir a biblioteca da escola. Por que, além de reabri-la, não criamos uma nossa? Começamos um embrião dela dentro de uma Unidade de Saúde, mas tivemos que sair de lá quando chegou um dentista que precisava atender na sala onde estávamos. Neste momento, alguém lembrou que a casa do coveiro, no cemitério do Colônia, ali na região, estava disponível. Pode parecer que sair de um serviço de saúde para um cemitério signifique uma piora, mas não: foi um ganho porque criamos uma narrativa sobre o cemitério. Ainda mais porque a maioria dos jovens que estavam conosco eram negros, ou seja, as principais vitimas do genocídio de nosso país. Conto sempre a história da Regina, que tinha 15 anos na época, e disse que não iria nem morta para lá. Eu respondi “mortos vamos todos. O importante é irmos vivos”. Hoje, os livros vão do cemitério à maternidade. Temos a biblioteca, a Casinha das Histórias, o banco do livro, onde você pode deixar e retirar livros. Nos comércios temos algibeiras na sorveteria, no bar. Adotamos as ruas e nelas ficam mediadores fazendo leituras em dias de evento. Criamos a “maternidade literária”, um acervo de literatura dentro do Hospital de Interlagos. Fechamos um ciclo de vida das pessoas e geramos vida por meio da palavra.
MC: De que maneira a literatura ajuda a contribuir no enfrentamento do racismo?
BSM: Nós, das comunidades periféricas e das bibliotecas comunitárias, nunca deixamos de lado essa literatura de autoria negra. Com 18 anos conheci Conceição Evaristo, Mirian Alves, Esmeralda Ribeiro. Não tínhamos o canal de comunicação de hoje, mas fazíamos essa literatura circular entre nós. Com a nova geografia que nossos corpos criaram na cidade através de nossa circulação, temos levado esses autores para os espaços em que faltava melanina. Espaços 100% brancos como grandes eventos literários, vitrines das grandes editoras. O contato com essa literatura negra tem um lado identitário para nós, mas também a função política de movimentar as coisas que parecem cristalizadas. A Conceição Evaristo fala sobre por que temos poucas romancistas negras. Para você escrever um romance precisa de tempo. E a gente não tem esse tempo sobrando para a escrita. As pessoas ralam, lutam para resolver uma série de questões de mazelas sociais, e escrevem no momento que sobra. Às vezes é levantando às quatro da manhã para escrever e depois indo trabalhar dando mil aulas para conseguir o mínimo para a sobrevivência. Temos ainda que caminhar, mas boas notícias. Como dizem os jovens “nada sobre nós é sem nós”. Então, hoje, as pessoas sabem que fica feio fazer algo sobre nós sem nos incluir. E a literatura segue nesse caminho.
MC: A literatura é a nossa esperança.
BSM: Ah, é a minha. Eu não conseguiria fazer nada sem ela.
MC: O futuro está nas mãos das crianças, dos jovens e das mulheres?
BSM: Da interação entre todo mundo. É a interdependência dessas gerações que faz a mudança. Mas a mulherada é demais, né? A gente segura as pontas de um jeito incrível e ainda trocamos afetos entre nós.
MC: O que é o amadurecimento para você?
BSM: Olho para a Bel menina e digo “não sofra tanto que vai dar tudo certo. Todas aquelas tentativas de te diminuir, de dizer que você é inadequada, que não tem beleza, tudo isso vai fazer você chegar aqui. Vem”. Tive câncer há 11 anos e falo que, quando a gente nasce, sabemos que vamos morrer. Mas quando se tem certeza é impactante. Cuidei da minha saúde, tive alta no ano passado. É interessante pensar “o que mudaria” e entender que nada. Sempre fiz as coisas em que acreditei. A vida está em transformação o tempo todo. O amadurecimento me traz uma certa tranquilidade e a vontade de seguir aprendiz. Estou fazendo Mestrado com 53 anos. Acho que envelhecer é um tempo muito bonito e interessante.