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Sociedades

Em Olinda (PE), música ajuda a preservar a história da nação Xambá

Xamba das Yabás, grupo que reúne senhoras da comunidade Imagem: Rennan Peixe/Divulgação

Mateus Araújo, colaboração para Ecoa, em São Paulo

Na periferia de Olinda, Região Metropolitana do Recife, o quilombo urbano do Portão do Gelo guarda com vigor uma história de resistência política e cultural, que foi capaz de transformar geográfica e socialmente o bairro de São Benedito e reavivar uma tradição religiosa quase extinta na década de 1930. Um trabalho no qual a música teve e tem papel fundamental.

Única descendente da nação iorubá Xambá na América Latina, a comunidade se estabeleceu em Olinda em 1950, com a reabertura do Ilê Axé Oyá Meguê. O terreiro fundado em 1930, no Recife, pela ialorixá Maria de Oyá, fechou as portas em 1938, por causa da perseguição aos cultos de matriz africana no período do Estado Novo, e sua líder religiosa morreu no ano seguinte. Doze anos depois, Mãe Biu, filha de santo de Maria, decidiu recriá-lo, e, assim, reagrupar toda a família – biológica e de fé.

A musicalidade faz parte da história da Xambá (como o quilombo é mais conhecido em Pernambuco) desde seu surgimento. Naquele tempo, para “camuflar” o som da cerimônia religiosa, o coco, ritmo musical percussivo popular na região Nordeste, embalava reuniões da nação. Em 1964, a música voltou a fazer parte das festividades, para celebrar o aniversário de Mãe Biu – tradição mantida até hoje, sempre em 29 de junho, mesmo após a morte da ialorixá em 1993.

O coco se tornou um grande símbolo da comunidade. De música de resistência a elemento de identidade de um povo, inspirou novas gerações, como o grupo Bongar, surgido há 19 anos, reunindo jovens locais.

Guitinho da Xambá, vocalista do grupo Bongar Imagem: Paulo Filizola/Divulgação

A ideia partiu de Guitinho, 38 anos, que estudou música no Conservatório Pernambucano e, em seguida, entrou para a graduação em Ciências Sociais na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Ele foi o primeiro do terreiro a fazer faculdade, em 2005.

“Fui vivenciar outras coisas para além da Xambá”, lembra. “Nesse tempo, já seguindo carreira de músico, via várias tentativas na comunidade de criar grupos musicais – sempre de pagode, e que nunca dava certo. Daí propus aos meus primos de criarmos um grupo de coco. Eu disse: ‘Olha, nossa história é tão rica, e, se quer se tornar universal, cante sua aldeia.”

O Bongar profissionalizou uma tradição, mesmo quando algumas pessoas duvidavam que daria certo. “Uma tia minha dizia: ‘Quem é que vai gostar de música de coco?’”, conta o músico. Apesar de terem marcado a memória da Xambá – e, por isso, despertavam dúvida na família sobre o sucesso da banda – o racismo e o preconceito não tolheram os sonhos dos jovens artistas.

Em quase duas décadas, eles já gravaram seis discos e um DVD e fizeram participações em festivais nacionais e internacionais. A obra do Bongar une a sonoridade dos tambores ancestrais e cânticos religiosos a sons de instrumentos como flauta, violão, baixo, guitarra, sax, acordeon e trombone, além de experimentos com latas e tonéis de metal.

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Transformação

O Bongar é parte importante de um processo de transformação e empoderamento da comunidade Xambá – que, em 2001, recebeu o título de quilombo urbano pela Fundação Palmares, e, em 2018, passou a ser Patrimônio Vivo de Pernambuco.

“Quando cheguei à Xambá, há 16 anos, vi as mulheres irem para o terreiro levando as roupas das cerimônias dentro de sacolas. Só lá elas se trocavam. Ninguém andava pelas ruas da comunidade usando as vestimentas. Os meninos eram todos carequinhas, e as meninas alisavam o cabelo”, lembra a jornalista Marileide Alves, autora do livro “Povo Xambá resiste – 80 anos da repressão aos terreiros em Pernambuco” (Cepe), indicado ao Prêmio Jabuti de 2019, na categoria Biografia, Documentário e Reportagem.

Xamba das Yabás, grupo que reúne senhoras da comunidade Imagem: Rennan Peixe/Divulgação

Segundo Alves, a partir de 2004, com o início de uma série de atividades formativas criadas pelo músicos para adolescentes e jovens negros locais – incluindo oficina de audiovisual e aula-espetáculo sobre candomblé, música e tradição – foi possível elevar a autoestima do povo da comunidade. “As pessoas têm orgulho de sua história. O que não acontecia nas gerações anteriores”.

“Tudo mudou bastante desde então. Hoje as pessoas não levam mais as roupas escondidas na bolsa, vão vestidas, e assumiram os cabelos naturais, penteados afro. A própria mãe de Guitinho usa dread”, conta a jornalista.

A manutenção da memória da nação movimenta vários projetos sociais implementados na Xambá, como o Centro Cultural Bongar, onde são oferecidas aulas de música e realizados eventos artísticos, e o Memorial Severina Paraíso da Silva, que reúne documentos, fotos e objetos históricos do quilombo.

A jornalista Marileide Alves, autora do livro sobre os 80 anos da Xambá Imagem: Elysagela Freitas/Divulgação

Com esse conjunto de ações, a comunidade passa a ser reconhecida nacionalmente, para que o quilombo saísse do anonimato e as pessoas passassem a conhecer a história do povo Xambá”, explica Marileide Alves. Trabalho que, segundo ela, se reflete na presença e no interesse de jovens e crianças pela história de seu povo, mesmo “em um tempo que a tecnologia domina tudo e a música de cultura de massa está inserida sempre nas periferias, na casa das pessoas. “Imagine o desafio, inclusive com a marginalização das religiões de matriz africana, com terreiros apedrejados e nossa lutar contra o preconceito e racismo.”

Outras gerações

O projeto de educação musical do Bongar conquistou tanto a comunidade que inspirou o surgimento de outro grupos.

Dona Glória, de 61 anos, por exemplo, é uma das integrantes do Xamba das Yabás. Grupo formado por 16 mulheres mais velhas da comunidade, que cantam coco de roda e músicas de terreiro.

“A Xambá é uma casa de mulheres, de matriarcas, e regida por orixá feminino. E somos nós, que, durante os rituais da casa, cuidamos das coisas. Estamos sempre juntas. Somos primas e irmãs, passando sempre o que aprendemos para as mais jovens. Repasso o que aprendi com minhas tias, minha mãe, minha avó”, diz Glória.

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Iniciada no candomblé há 25 anos, a aposentada conta que encontrou no seus sobrinhos do Bongar um impulso de resistência. “Eles começaram ensaiando nos quintais da casa da gente. E a comunidade mudou muito depois do Bongar”, afirma. “Quando eu era mais jovem, tinha medo de falar de religião.sempre eu tinha que alisar meu cabelo. Gastei muito com salão, mas de um tempo pra cá, eu decidi que meu cabelo tem que ser natural, tenho que ser eu mesma. A Amazônia é a maior floresta no mundo porque é natural, não é mesmo?”

Para a Ingrid, 18 anos, sobrinha-neta de Dona Glória, a música também tem esse papel importante. Integrante do grupo Pirão Bateu, com adolescentes da Xambá, que faz música usando instrumentos tradicionais e utensílios domésticos, ela lembra a arte já faz parte do seu dia a dia desde criança.

Grupo Pirão Bateu, formado por adolescentes da comunidade Imagem: Rennan Peixe/Divulgação

A gente via nossos tios e nossas tias tocando no terreiro, e tio Guitinho no Bongar. Já nascemos com música”, diz a jovem, estudante de fisioterapia. “Por brincadeira, fizemos um grupo, com crianças, o Mixidinho [para as crianças de até 10 anos], e isso se tornou uma coisa séria. Passamos a fazer show, viagem.”

A história, aos poucos, já vai se repetindo na nova geração da Xambá. A tarefa que um dia foi abraçada pelo Bongar, de resgatar e recontar a história de seu povo, agora conquista Ingrid. “A gente se torna responsável porque quer aprender. Tio Guitinho diz que quando não estiver aqui, será com a gente.”

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