Por Kamille Viola, originalmente publicado no UOL.
Fundada há quase quatro anos, em outubro de 2016, a Casa das Mulheres da Maré é um projeto da ONG Redes da Maré que oferece cursos profissionalizantes de gastronomia, assistente de salão de beleza e bordado, além de atendimento psicológico e jurídico. O lugar é também um espaço de empoderamento feminino: todas as formações incluem aulas de Gênero e Sociedade, com conversas sobre desigualdades que estruturam a sociedade brasileira e que afetam as mulheres das favelas.
Com a pandemia, as atividades foram interrompidas, e o bufê Maré de Sabores, que funciona no espaço e é formado por ex-alunas, teve seus eventos cancelados ou adiados, comprometendo a renda das trabalhadoras que o integram. Mas logo surgiram ações que para ajudar a combater os efeitos da Covid-19 no complexo de favelas e gerar renda para moradoras do local.
Dentre as ações planejadas pela ONG na campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, estava a distribuição de refeições para a população em situação de rua da Maré. A instituição possui um lugar de acolhimento para pessoas que fazem abuso de álcool e outras drogas, o Espaço Normal, que precisou ser fechado durante a pandemia, já que promovia aglomeração. Com isso e a diminuição da circulação de pessoas na favela, era necessário fazer a comida chegar até essas pessoas. Foram convocadas, então, 18 cozinheiras do Maré de Sabores, que passaram a preparar diariamente a comida para elas. Além disso, dez outras pessoas participam da montagem e distribuição das quentinhas.
“O bufê engaja de 15 a 60 mulheres, dependendo do volume de eventos contratados. Com a pandemia, os eventos cessaram: alguns foram cancelados e outros, adiados. Consequentemente, a renda das mulheres foi comprometida. Entendendo que essas mulheres fazem parte do projeto Maré de Sabores e existia esse pensar da alimentação do território, produzir refeição era uma forma de garantir trabalho e renda para essas mulheres que já estavam engajadas no projeto, a partir do bufê, e garantir a alimentação das pessoas em situação de rua”, explica Mariana Aleixo, coordenadora da Casa das Mulheres. “Dia 28, a gente completou cinco meses de distribuição de refeições, sendo em média 300 diárias. Isso corresponde a 43 mil refeições nesses cinco meses. As mulheres trabalham três vezes por semana, numa escala, porque a gente está nesse processo de pandemia”, conta. A distribuição diária de refeições está garantida até outubro, graças a editais e campanhas de financiamento coletivo. Em novembro e dezembro, ela vai acontecer duas vezes por semana.
Outra ação foi a confecção e distribuição de máscaras: já que elas são um dos principais equipamentos para a prevenção da Covid-19, surgiu a ideia de distribuí-las aos moradores. Como o complexo de favelas possui um polo de costureira, foi encontrada uma forma de aproximá-las da casa, gerar renda para elas e ajudar a combater a pandemia: a produção de máscaras, que são distribuídas de porta em porta, junto a álcool em gel, e também para as pessoas em situação de rua. “Na primeira fase, foram produzidas 20 mil por semana, durante dez semanas, ou seja, 200 mil máscaras. O plano é que a gente tenha duas máscaras por morador, a gente tem 140 mil habitantes, então seriam 280 mil máscara. Até o final de agosto, vamos chegar a mais 100 mil, ou seja, vamos ter 300 mil máscaras produzidas por essas 54 costureiras”, comemora a coordenadora.
Embora a Casa não esteja com seu funcionamento regular, algumas mulheres, além das envolvidas na campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, ainda têm visitado o espaço. “A gente não está estimulando a volta das formações, mas, com atividades agendadas, com protocolos de circulação dentro da casa, com horário e número controlado, a gente mantém o vínculo com essas mulheres. A ideia é que as nossas ações agora sejam pontuais, algumas virtuais — entendendo que nem todas as mulheres vão ter acesso, por causa de pacote de dados —, mas que essas formações cheguem a um número de mulheres e que mantenham vínculos para que, quando já houver a vacina, quando a pandemia estiver de alguma forma controlada, a gente possa retomar nossas atividades normais”, espera Mariana Aleixo. A casa também continua com atendimento jurídico e psicológico, que teve aumento na procura durante a pandemia.
O embrião do espaço foi o Maré de Sabores, um projeto de protagonismo feminino a partir da gastronomia que surgiu em 2010 e foi o primeiro a ocupar o espaço em sua inauguração, em 2016. Logo, o curso teve um desdobramento, o bufê de mesmo nome. “Esse desdobramento foi muito orgânico. A gente imaginava, inicialmente, que as mulheres iriam se qualificar, melhorar os serviços prestados na Maré e iriam para o mercado de trabalho, iriam empreender. Elas se organizaram a partir dessa primeira formação, que é gastronômica, mas também política, de perguntar: ‘O que a gente faz com o que a gente aprendeu junto?’. Fomos entendendo essa condição da mulher, dessa qualidade de vida que é mais coletiva, que está ligada à família, e criamos uma alternativa a partir disso, que é o bufê. É uma forma de elas gerarem trabalho e renda a partir da produção de caterings e também da lógica de vida delas: o que é possível de tempo de trabalho [para cada uma], e assim por diante”, descreve a coordenadora.
O sonho da construção do espaço era algo anterior ao próprio curso de gastronomia. O lugar é uma resposta da Redes da Maré à sua própria experiência na comunidade, ao reconhecer que as mulheres estão sempre na liderança da garantia de direitos do território. “Isso está desde a construção desta favela e das outras do Rio de Janeiro. Para garantir água, foi a partir da reunião de mulheres. Energia. O nosso território foi construído por meio desse protagonismo das mulheres, de olhar essa questão da qualidade de vida a partir da família, do coletivo. Ter um espaço era reconhecer que as mulheres estão nessa liderança e, consequentemente, organizar essas mulheres de outra forma nesse momento”, analisa ela.
A processo que culminou na fundação da ONG Redes da Maré começou em 1997, com a criação do Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré — a vereadora Marielle Franco, por exemplo, foi aluna. Em 2007, a instituição foi formalizada com o nome atual. A organização tem 40 projetos divididos em quatro eixos: Arte, Cultura, Memórias e Identidades (que inclui um espaço cultural, o Centro de Artes Maré); Desenvolvimento Territorial (do qual a Casa das Mulheres e o Espaço Normal fazem parte); Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça e Educação. “A Redes tem uma coisa muito particular: ela nasce a partir de moradores e hoje também é liderada e produzida por pessoas do território. Eu nasci aqui na Maré, me formei em gastronomia e, a partir desse desdobramento, surge o Maré de Sabores”, pontua Mariana Aleixo.