No Dia da Consciência Negra, elas são saudadas pelos projetos de geração de renda, oficinas e ações de combate às desigualdades que transformam os terreiros em espaços de apoio e resistência
Por Cíntia Cruz e Amanda Pinheiro, do jornal O Globo
Com seus ojás, baianas, batas e panos da costa, elas tornam ainda mais belo um barracão de candomblé em dias de festas. Mas, para além da beleza de suas indumentárias, mulheres de terreiros carregam também missões religiosas e sociais à frente de seus ilês (casas). No Dia da Consciência Negra, elas são saudadas pelos projetos de geração de renda, oficinas e ações de combate às desigualdades que transformam os terreiros em espaços de apoio e resistência.
No ilê Axé Omolu e Oxum, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, Mãe Nilce de Iansã é a Iyà Egbé (mãe da comunidade) e coordenadora de projetos do terreiro, liderado pela ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, sua tia.
Professora de Culinária com três livros sobre a cozinha afro-brasileira de terreiro, Mãe Nilce é a responsável pelas oficinas de comidas de santo, que também leva para outros terreiros. Com a pandemia, lançou um canal no Youtube, o “Canal da Mãe Nilce”, onde ensina as receitas e, ao fim de cada vídeo, passa uma mensagem de combate ao preconceito.
— Nas aulas, falamos sobre segurança alimentar, reaproveitamento de alimentos, geração de renda. Já fizemos várias oficinas. Meu primeiro livro lancei em 1997 dentro do projeto Comunidade Solidária, onde capacitamos mais de 60 adolescentes de 14 a 18 anos. Hoje temos mulheres que geram renda e formaram filhos a partir desse aprendizado que tiveram no terreiro — diz.
Em outra frente de atuação, o ilê orienta e encaminha aos órgãos competentes as mulheres vítimas de violência ou pessoas com demandas jurídicas que buscam ajuda. Há ainda distribuição de cestas básicas e, diante do cenário de pandemia, a confecção de máscaras pelas filhas de santo, além de turbantes para distribuir às mulheres que tiveram câncer de mama.
O ilê Axé Omiojuaro, em Nova Iguaçu, também está engajado no combate à violência contra a mulher. Na cartilha “Viver sem violência sob a proteção dos Orixás”, além de explicações sobre como a violência acontece, há informações acerca dos tipos de crimes e orientações às vítimas de como denunciá-los.
A casa foi fundada há 35 anos pela ialorixá Mãe Beata de Iemanjá, escritora e militante de direitos humanos, que morreu em 2017. Expoente no combate à discriminação racial e de gênero, ela tem seu legado levado adiante pelo seu filho biológico e sucessor espiritual, o babalorixá Adailton Moreira.
Além de Pai Adailton, também escreveram a cartilha as ekejis Lúcia Xavier e Malu Stanchi. Lúcia, que também coordena a ONG Criola (organização de mulheres negras que atua contra o racismo e o sexismo), foi confirmada ekeji (mulher que representa um determinado orixá no ilê) de Iemanjá há 23 anos. Ela explica que o enfrentamento à violência contra a mulher faz parte da história do terreiro:
— Nossa mãe era ativista de direitos humanos, uma mulher que lutou e divulgou a Lei Maria da Penha, defendia na comunidade e no entorno dela as mulheres que enfrentavam a violência doméstica. Com sua morte, demos seguimento a esse trabalho.
Além da religião
Aos 69 anos de idade e prestes a completar 50 de santo, em janeiro, Mãe Nilce de Iansã, do ilê Axé Omolu e Oxum, acredita na importância de um terreiro de candomblé ir além da sua atuação religiosa:
— Temos um espaço físico muito grande que fica ocioso fora das atividades religiosas e devemos utilizá-lo para ajudar ao próximo. Todos os nossos cursos, oficinas e atividades são gratuitos. Trazer a comunidade para dentro do terreiro é uma forma de mostrarmos como trabalhamos e, assim, tirar o imaginário negativo e o racismo religioso que existe no coração de algumas pessoas por falta de conhecimento.
Apesar da pluralidade religiosa no Brasil, a comunidade de terreiro enfrenta diariamente a intolerância religiosa. Segundo o Disque 100, o serviço de proteção dos direitos humanos, no primeiro semestre de 2019 houve um aumento de 67,7% de denúncias, comparado ao mesmo período de 2018. Ainda de acordo com o órgão, a maioria dos relatos foi feita por praticantes de religiões de matriz africana.
Para combater essa intolerância, Liziane Borges, de 35 anos, filha de Xangô no Ilê Axé Oni Dankô, em Salvador, criou o projeto “Saberes e fazeres no Dankô”. A iniciativa é voltada para a comunidade do entorno do bairro da Liberdade e oferece aulas de cânticos, toques de atabaque, culinária e dança dos orixás.
Além das oficinas, Liziane lidera um grupo que distribui sopa e pão para pessoas em situação de rua e cestas básicas para instituições.
— Temos como missão propagar e preservar o legado religioso afro-brasileiro, acolhendo e auxiliando o indivíduo no seu desenvolvimento espiritual. Acredito que toda e qualquer instituição religiosa, seja candomblecista ou não, tem que ir além da prática religiosa — diz.
—O papel social de uma casa é tão importante quanto sua força religiosa, e axé é isso: energia de vida — reforça Mãe Celina de Xangô.
Preservar o legado religioso afro-brasileiro está no centro do trabalho feito pela ialorixá de 56 anos, no Ilê Inzo Nganga dia Nzaze, localizado na chamada “Pequena África”, na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Presidente e diretora-executiva do Centro Cultural Pequena África e co-fundadora da Lavagem do Cais do Valongo, ela compartilha os conhecimentos ancestrais, aprendidos com suas bisavós, avós e mãe, sobre o poder das ervas.
— Os banhos que costumo utilizar no ilê e receitar aos meus clientes se tornaram grandes potências e referências do meu trabalho, e assim surgiu a oficina “O Poder das Ervas”. Inicialmente dentro do ilê e, depois, levado para outros espaços — explica a ialorixá, que atende grupos intimistas de 15 pessoas, até grandes plateis, de até 4 mil pessoas.
Para ela, ser de axé e compartilhar esses saberes ancestrais é um ato de resistência:
— Ser de axé não é só um ato religioso: é resistência, luta, é escrever e reescrever narrativas, é uma forma de estar no mundo que respeita, cuida e cultiva a natureza — diz.