Presidente afirmou que ‘tudo agora é pandemia’ e que ‘tem que acabar esse negócio’, em referência à doença que matou mais de 162 mil brasileiros
Gustavo Maia, Gabriel Shinohara, Daniel Gullino e Bruno Alfano, jornal O Globo
BRASÍLIA — O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta terça-feira que o Brasil precisa deixar de ser um “país de maricas”. A declaração foi feita enquanto Bolsonaro comentava a Covid-19, doença que matou mais de 162 mil brasileiros. O presidente afirmou que “tudo agora é pandemia” e que “tem que acabar esse negócio”. Ele disse lamentar os mortos, mas ressaltou que “todos nós vamos morrer um dia”.
— Tudo agora é pandemia, tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia, aqui todo mundo vai morrer. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar (de) peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa? A geração minha, do Milton (Ribeiro, ministro da Educação), (é) diferente, 60 anos de idade. A geração hoje em dia é toddynho, nutella, zap. É uma realidade — disse Bolsonaro, durante evento no Palácio do Planalto.
A declaraçao foi dada horas depois de o presidente ter comemorado em uma rede social um “evento adverso grave”, que fez com que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) interrompesse o estudo clínico da vacina Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan e pelo laboratório chinês Sinovac Biotech. Na rede social, Bolsonaro escreveu: “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O Presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
A cerimônia era sobre a retomada do setor de turismo. Bolsonaro disse que o setor foi “na lona” com a pandemia, mas disse que a doença foi “superdimensionada”. Em março, o presidente disse que o coronavírus não mataria mais de 800 pessoas no Brasil.
— Vocês foram na lona nessa pandemia. Que foi superdimensionada. A manchete amanhã: “ah, não tem carinho, não tem sentimento com quem morreu…”. Tenho sentimento com todos que morreram. Mas (foi) superdimensionado.
O presidente também minimizou a possibilidade de uma “segunda onda” do coronavírus, como tem ocorrido em alguns países, dizendo que “tem que enfrentar”:
— E agora já começam a enfrentar o povo brasileiro com uma segunda onda. Tem que enfrentar, pô, é a vida. Tem que enfrentar.
‘Há homofobia nessa fala’
Na avaliação do advogado Paulo Iotti, um dos autores da ação no STF que resultou na criminalização da homofobia, a fala de Bolsonaro é homofóbica porque incita o preconceito contra homossexuais.
— O termo “maricas” remete a covardia, mas notoriamente porque remete a homens gays, como supostamente “menos homens” que homens heterossexuais. Então, há homofobia nessa fala sim.
Segundo ele, se houver denúncia, o Judiciário discutirá se ele teve “dolo” de ser homofóbico (ou seja, a intenção).
— Homotransfobia foi considerada racismo, e em geral se exige “dolo direto”, que seria a intenção propriamente dita, mas eu entendo, com precedente do STJ, que o racismo admite o chamado “dolo eventual”, que é o “assumir o risco” de produzir o resultado, como suficiente para caracterizar o crime (crime de racismo homofóbico, no caso). Assumir o risco não é um querer propriamente dito, mas não se importar com a produção desse resultado (incitar a homofobia, no caso) — explica.
O advogado afirma ainda que a fala pode gerar “dano moral coletivo”, gerando uma indenização a ser revertida em favor de políticas públicas contra a homofobia.
— Isso porque o Direito Civil afirma que atos imprudentes, como falas imprudentes, configuram atos ilícitos indenizáveis — explica.
Toni Reis, Diretor-Presidente da Aliança Nacional LGBTI+, afirma que ser gay não tem “absolutamente nada a ver com coragem”.
— Temos que acreditar na racionalidade (e por isso adotar práticas para se proteger do vírus, como distanciamento social). Não é uma questão de feminilidade, de coragem. Temos que deixar de ter essa masculidade tóxica — diz. — E o presidente é reincidente. Isso vai entrar para a coleção de grandes frases ofensivas dele.
Já Marcelle Cristiane Esteves, vice-Presidente do Grupo Arco Íris de Cidadania LGBTI, diz que essa é uma reprodução do pensamento de uma sociedade arcaica.
— Quando o presidente, a pessoa que ocupa um cargo máximo no país, reverbera esse linguajar, ele está dizendo para todas as famílias: ou vocês são fortes ou são maricas e não são absolutamente nada. É homofóbico e carregado de preconceito. Tanto é e ele sabe que é que logo ele se dá conta e faz uma observação sobre a imprensa. Isso é uma falta de respeito.
Ironia para candidatura de centro
Durante a cerimônia, Bolsonaro também ironizou a tentativa de criação de uma candidatura de centro. Ele rebateu quem disse combater o “ódio” e afirmou que isso é “coisa de marica”. Nesta semana, o ex-ministro Sergio Moro defendeu, em entrevista ao GLOBO, a construção de “alternativas não polarizadas” para as eleições de 2022.
— Nós temos que buscar mudanças, pô. Não teremos outra oportunidade. Aí vem uma turminha aí falar de “ah, queremos um centro, nem ódio pra lá, nem ódio pra cá”. Ódio é coisa de marica, pô. Meu tempo de bullying na escola era porra. Agora, se chamar o cara de gordo é bullying.
Em outro momento, Bolsonaro disse que a sua cadeira de presidente está à disposição e comentou:
— Não sou Super-Homem, mas aquele pipoca tem kriptonita ou um formigueiro. E eu vejo pessoas articulando para chegar lá não por seus méritos, mas criticando, falando mal, falando besteira o tempo todo, mentindo, provocando, caluniando, perseguindo os familiares o tempo todo. Não querem chegar pelos seus méritos, mas sim para derrubar quem está lá. Alguém acha que tenho algum tesão para estar naquela cadeira está completamente equivocado. Preciso de ajuda para arrumar esse Brasil.