Pesquisadora afirma que racismo estrutural promove hipersexualização e adultização dessas jovens, para quem o exercício da liberdade física é limitado
Larissa Medeiros, jornal O Globo
De acordo com a plataforma “Violência contra a mulher em dados”, entre 2011 e 2017, mais de 45% dos casos de abusos sexual registrados no Brasil foram de meninas negras de 0 até 9 anos. No mesmo período, quando analisamos os números referentes às meninas brancas, este percentual cai mais de 7%. O racismo estrutural e a vulnerabilidade social e econômica ajudam a explicar esses dados, mas é preciso discutir também a hipersexualização dos corpos de mulheres negras, inclusive na infância.
Deise Benedito, especialista em Relações Étnico-raciais e mestre em Direito e Criminologia pela Universidade de Brasília (UnB), afirma que o racismo sofrido pela população negra contribui para a objetificação e o aumento da vulnerabilidade desses corpos até os dias de hoje.
— Esse processo é influenciado pelo racismo, a discriminação e pela permanente “coisificação” de meninas negras consideradas como mais fáceis, maliciosas e transgressoras, além de serem expostas de forma errônea como pervertidas — analisa a especialista.
Uma pesquisa sobre a percepção do corpo de crianças negras publicada pela Universidade Georgetown, nos EUA, mostra que garotas de pele mais escura são consideradas menos inocentes, mais maduras, mais sabidas sobre sexo e mais autossuficientes do que crianças brancas.
Deise explica que esse processo de “adultização”, sofrido principalmente por meninas negras, afeta a construção do imaginário infantil da criança.
— O corpo da menina branca é protegido pela inocência enquanto o da negra é considerado sujo. O processo do racismo estrutural na sociedade brasileira rouba cruelmente a essência das meninas negras, e a “adultização” contribui para transgredir a infância, os sonhos e as fantasias infantis — afirma.
A estudante Larissa Fernandes, de 15 anos, se identificou com um episódio da série de conferências TEDx São Paulo, em que a ativista Nátaly Neri aborda a forma como a sociedade elogia o corpo da menina negra à espera do estereótipo que vê na mídia. Para Larissa, o racismo disfarçado de elogio, ao qual Neri se referiu, fez parte de sua infância e ainda acontece nos dias de hoje.
— Algumas das frases que ela citou como “ela vai dar trabalho” ou “vai ter muitos pretendentes” fizeram e fazem parte da minha vida. Geralmente, essas afirmações eram reproduzidas por desconhecidos ou parentes de segundo grau. Como essas pessoas sabiam sobre o futuro de uma criança preta que nem tinha se desenvolvido ainda? — questiona Larissa. — Nós, que somos ou fomos crianças negras, escutamos coisas que influenciam muito o nosso futuro e a maneira como vão nos enxergar — afirma.
A estudante Caroline Rodrigues, de 21 anos, acredita que a objetificação dificulta o exercício da liberdade dos corpos negros. Para ela, a livre exposição do corpo feminino é um tema que precisa ser apresentado às meninas negras de forma mais cautelosa, principalmente se elas estiverem inseridas em ambientes menos privilegiados economicamente e socialmente.
— Acho que (essa liberdade) deve ser tratada com cuidado justamente por haver um perigo de exposição. Não dá para comparar uma menina que vive na favela totalmente sem segurança com uma menina de classe alta que vive em ambientes mais seguros. Acredito que a restrição ao vestir, infelizmente, varia de acordo com a classe social em que ela está inserida — aponta.
A pesquisadora Deise Benedito lembra que, apesar das mães alertarem suas filhas sobre a objetificação dos corpos negros, não há como vigiá-las o tempo todo, uma vez que grande parte dessas figuras maternas são chefes de família e trabalham fora. De acordo com a plataforma Gênero e Número, em 2018, o número de mulheres negras monoparentais com filhos de zero a 14 anos chegou a mais de 7 milhões, o maior já registrado.
Deise ressalta que é preciso cuidado até mesmo ao postar fotos das meninas na internet:
— Vemos nas redes sociais situações absurdas em que as crianças são expostas. Os pais precisam ter extremo cuidado com a preservação delas na internet, para que não se tornem vítimas de violência sexual através das redes. Isso precisa ser tratado com ainda mais cuidado entre as meninas negras vítimas do racismo e da hipersexualização de seus corpos — alerta.
*estagiária, sob supervisão de Renata Izaal