Kamala Harris será a primeira vice-presidente mulher dos Estados Unidos. Filha de pais imigrantes – mãe indiana-americana e pai jamaicano -, ela será também a primeira vice-presidente negra do país e a primeira descendente de indianos.
Harris, de 56 anos, atualmente senadora democrata pelo estado da Califórnia, foi companheira de chapa de Joe Biden, eleito após um processo eleitoral longo e complexo. Antes disso, ela havia concorrido com Biden para a indicação presidencial na convenção democrata.
“Eu tenho fé no povo americano. Acredito fortemente que nós, seja quem for em quem votemos, vamos defender a integridade de nossa democracia e uma transferência pacífica de poder”, afirmou ela na terça-feira (3/11), quando os americanos foram às urnas.
Conhecida por suas perguntas incisivas nas comissões de que faz parte no Senado, ela tem entre suas prioridades reformar a Justiça criminal dos EUA – projeto visto como uma resposta a críticas de progressistas a seu trabalho como uma dura procuradora-geral da Califórnia.
São poucas as mulheres que tentaram concorrer ao cargo de presidente ou vice-presidente dos Estados Unidos. Quem ocupa o lugar na história de primeira mulher negra a fazê-lo é Shirley Chisholm, também primeira mulher negra eleita ao Congresso (eleita por sete mandatos, entre 1969 e 1983). Ela concorreu à nomeação do partido democrata à Casa Branca em 1972, mas não foi escolhida.
Harris foi apenas a quarta mulher a integrar uma chapa presidencial de um grande partido nos Estados Unidos – e a única mulher negra a fazê-lo.
Antes dela, vieram Geraldine Ferraro (vice de Walter Mondale, do partido Democrata, em 1984), Sarah Palin (vice de John McCain, do partido Republicano, em 2008), e Hillary Clinton, em 2008 (concorreu na convenção democrata) e 2016 (foi escolhida como a candidata do partido Democrata). Todas antes dela, no entanto, perderam.
Harris foi escolhida pela campanha de Biden de uma lista que tinha estimados 13 nomes de mulheres, incluindo pesos-pesados, como a senadora e ex-pré-candidata Elizabeth Warren.
“Tenho a grande honra de anunciar que escolhi Kamala Harris – uma destemida lutadora em favor das pessoas comuns e uma das melhores servidoras públicas do país – como minha companheira de chapa”, anunciou Biden pelo Twitter, na época.
Ele afirmou que, nos tempos em que Harris foi procuradora-geral da Califórnia, “enfrentou os grandes bancos, ergueu o povo trabalhador e protegeu mulheres e crianças do abuso. Tive orgulho na época e tenho orgulho agora em tê-la como minha parceira nesta campanha”.
Sobre o convite, Harris afirmou que estava “incrivelmente honrada e pronta para trabalhar”.
De rival a companheira de chapa
No ano passado, Kamala Harris surgiu na dianteira de um embolado campo de pré-candidatos democratas, graças a uma série de bons desempenhos em debates eleitorais – e por uma dura crítica ao então rival Joe Biden em questões de raça. No entanto, a campanha de Harris não sobreviveu para além do início do ano.
Nascida de pais imigrantes (uma mãe indiana e um pai jamaicano) em Oakland, na Califórnia, Harris foi criada majoritariamente pela mãe, pesquisadora de câncer e ativista de direitos civis. Os pais se divorciaram quando ela tinha sete anos e, quando tinha 12 anos, Harris se mudou com a mãe e a irmã mais nova, Maya, para Montreal, no Canadá.
“Minha mãe entendia muito bem que estava criando duas filhas negras”, escreveu Harris em sua autobiografia. “Ela estava determinada a garantir que nos tornaríamos mulheres negras confiantes e orgulhosas.”
Uma reportagem do jornal The New York Times mostrou como um vilarejo no sul da Índia, Thulasendrapuram, parou para rezar para Harris no dia da eleição. Era a cidade natal do seu avô materno.
Sobre sua origem mista, apontada como um possível obstáculo para ela se identificar com eleitores negros, Harris afirmou em 2019 ao Washington Post que políticos não devem ser estereotipados por sua cor ou ascendência. “Eu sou quem eu sou. Estou de bem com isso. Você talvez tenha que entender isso melhor, mas eu estou bem com isso.”
Depois de cursar a universidade Howard, a mais prestigiosa entre as universidades dedicadas a estudantes negros nos EUA, em em Washington, D.C, Harris estudou Direito na Universidade da Califórnia em Hastings e iniciou sua carreira na Promotoria do condado de Alameda. Tornou-se promotora-chefe em San Francisco em 2003, antes de ser eleita a primeira negra procuradora-geral da Califórnia.
Em 2013, Harris conheceu o advogado Douglas Emhoff, com quem se casaria um ano depois. Ele, divorciado, tinha filhas crescidas de outro casamento, que chamam Kamala de “Momala”.
Harris ganhou reputação como estrela ascendente do Partido Democrata, até ser eleita ao Senado americano em 2017.
No Legislativo, ela se destacou durante seus ásperos questionamentos a dois indicados por Trump – Brett Kavanaugh, então nomeado à Suprema Corte, e William Barr, nomeado ao cargo equivalente a ministro da Justiça.
Quando ela anunciou sua candidatura presidencial, houve entusiasmo entre progressistas. Mas logo ela começou a ser criticada por não trazer respostas claras a problemas amplos e cruciais, como saúde. Ela tampouco conseguiu capitalizar em cima de um ponto-chave: sua boa performance em debates, que comumente colocavam Biden na linha de ataque.
Harris tentou caminhar sobre a tênue linha que separa moderados e progressistas no Partido Democrata, mas acabou não fidelizando nenhum desses públicos.
Em março, Harris endossou Biden, afirmando que faria “tudo em meu poder para ajudá-lo a se eleger o próximo presidente dos EUA”.
Reforma policial e questões de raça
A participação na corrida eleitoral colocou o histórico de Harris sob os holofotes. Apesar de ter uma visão mais à esquerda em questões como casamento homossexual e pena de morte, ela enfrentou críticas de progressistas por não ser progressista o bastante em temas-chave como reforma policial, combate às drogas e condenações judiciais equivocadas. Esses temas têm sido motivo de amplas discussões em meio aos debates antirracismo em curso nos EUA.
Do seu histórico, foi pincelado que em 2004, por exemplo, ela se apôs à redução das penas mínimas. Além disso, uma década depois, ela se absteve de se posicionar sobre um projeto de lei que determinaria investigações independentes de casos envolvendo “uso de força letal” por parte da polícia. Nos EUA, a polícia mata pessoas das comunidades negras e latinas desproporcionalmente.
Mas durante a campanha, Harris defendeu mudanças em práticas policiais e pediu pela prisão dos policiais que mataram Breonna Taylor, mulher negra de 26 anos morta pela polícia em sua casa e um dos símbolos dos protestos Black Lives Matter (“Vidas negras importam”).
Harris também falou sobre a necessidade de desconstruir o racismo estrutural no país. Mas, no que diz respeito à reforma policial, há divergências. Biden se opõe ao argumento de que a polícia deve ter seus orçamentos cortados. Harris tergiversa, pedindo uma “reimaginação” da segurança pública.
Em diversos momentos, ela afirmou que sua identidade a torna unicamente apta a representar os cidadãos marginalizados.
Debate entre vices
Em outubro, a força de Harris foi colocada à prova.
Enfática e firme, ela debateu com o vice de Donald Trump, Mike Pence. Descreveu a resposta do governo Trump à pandemia como “o maior fracasso de qualquer administração presidencial”.
Discutiram sobre aborto, a Suprema Corte e meio-ambiente. Os dois candidatos foram bem, com alguns deslizes, durante os 90 minutos de debate. E Harris chamou a atenção quando pedia para não ser interrompida: “Sr. Vice-presidente, eu estou falando”, ela disse. “Se você não se importar em me deixar terminar, poderemos ter um diálogo.”
Quando teve a chance, ela falou sobre sua formação e experiência, aproveitando a oportunidade para se apresentar a um público maior dos Estados Unidos. Ao contrário de Pence, ela frequentemente falava diretamente para a câmera – consciente de que era importante se conectar com o público.