No Afrogames, alunos também aprendem a usar o computador e têm aulas de inglês
Sérgio Matsuura, do O Globo
RIO – A carreira de jogador profissional de videogames é cada vez mais atraente para os jovens, que sonham com fama e premiações milionárias. Mas, para chegar lá, é preciso ter treinamento e dinheiro sobrando para investir em bons computadores e acessórios.
O projeto Afrogames, ligado ao Afroreggae, surgiu para suprir essa demanda, oferecendo treinadores e toda a infraestrutura para crianças e adolescentes de comunidades carentes que sonham com a profissão, e está lançando a primeira equipe profissional formada apenas por moradores de favelas.
— É o primeiro centro de formação de jogadores de eSports dentro de uma favela no mundo — vibra o empresário e produtor musical Ricardo Chantilly, um dos idealizadores do projeto. — Quando a gente pensa num gamer, imaginamos um garoto com um computador poderoso, uma conexão com a internet de qualidade, uma cadeira confortável e, principalmente, que não precisa trabalhar para ajudar na renda da família. Essa não é a realidade dos jovens nas periferias, por isso levamos tudo isso para dentro da favela.
O projeto surgiu numa conversa de Chantilly com José Júnior, fundador do Afroreggae, e William Reis, coordenador executivo da ONG, que o convidaram para assumir os projetos musicais da instituição. Na época, o produtor musical estava analisando o mercado de eSports e apresentou um vídeo com a novidade para os dois.
— A primeira coisa que a gente observou é que não tinha um negro jogando. É um universo muito branco — repara Reis.
Uma sala na sede do Afroreggae em Vigário Geral foi reformada para receber 20 computadores de última geração. A primeira turma já foi formada no ano passado, com cem jovens moradores de periferias, sendo que seis deles foram selecionados para integrar o time Afrogames, que disputará torneios de League of Legends a partir do ano que vem.
Ronald Nascimento, de 19 anos, foi um dos escolhidos. Sem computador em casa, ele jogava em lan houses até surgir a oportunidade oferecida pela ONG. Antes da pandemia, ele frequentava aulas nas segundas, quartas e sextas-feiras, e treinava com a equipe nas terças e quintas-feiras.
— Eu já sonhava há algum tempo em ser jogador profissional — diz o jovem, que dá seus primeiros passos na carreira, recebendo uma ajuda de custo de um salário mínimo por integrar o time do projeto.
Além dos jogos — League of Legends e Fortnite —, o projeto oferece cursos de programação para a criação de videogames e de música para trilhas sonoras. Todos os participantes também recebem aulas de inglês, língua essencial para o universo gamer.
A partir da retomada, prevista para novembro, os jovens também serão treinados para se tornarem streamers, transmitindo partidas pela internet, uma das principais fontes de renda dos jogadores profissionais.
— A HyperX, que é uma das nossas parceiras, vai trazer influenciadores que darão aula para os alunos, ensinando como se portar nas transmissões, como melhorar a presença nas redes sociais — explica Chantilly.
O Afrogames oferece cem vagas, sendo que 30% delas são destinadas a meninas e pessoas com deficiência. O único pré-requisito é a idade mínima de 14 anos, exigida pelos jogos. O professor de League of Legends no projeto, Renan Costa, conta que o desenvolvimento dos alunos foi surpreendente.
— Nós recebemos jovens que estavam começando do zero, a maioria nem tinha conta de e-mail para fazer o cadastro no jogo — lembra o professor. — Tenho um aluno que mostrou um crescimento absurdo. Se tivesse uma estrutura em casa, com certeza seria profissional.
Robótica para crianças
Com o time entrando em disputas de campeonatos, a estrutura também foi profissionalizada, até mesmo com a contratação de um psicólogo para acompanhamento dos atletas. A parada forçada por causa da pandemia atrapalhou os planos, pois os jogadores não têm equipamentos em casa. Por isso, diz Costa, a cobrança vai ser redobrada no retorno.
— Eles já sabem como é a pegada, vamos ter que trabalhar para retomar essa pegada e ir além — afirma o professor. — Os jogadores selecionados vão representar o Afrogames. Eles vão ter que mostrar que não estão aqui só para jogar, mas para competir.
Como em outros esportes, a profissionalização é para poucos. Mas mesmo os que não seguirem carreira aprendem a operar um computador, ferramenta essencial na maioria dos empregos, e conhecimentos da língua inglesa.
Quem opta pelo curso de programação encontra um mercado com déficit de mão de obra. Segundo Chantilly, já existem conversas com empresas para que os jovens saiam do programa empregados.
Empolgado, Chantilly planeja a expansão do projeto para a sede do Afroreggae no Cantagalo, inclusive com a construção de uma arena para competições. O empresário também pensa no Afrogames Kids, para ensinar robótica e programação para crianças nas favelas.
— As pessoas dizem que precisam de um detox digital. A realidade na favela é de desnutrição digital. Os jovens têm acesso no máximo a um celular — diz Chantilly. — O objetivo é que o projeto se torne um celeiro de jogadores e profissionais de TI. Os jogos podem ser vendidos nas lojas de aplicativos e, quem sabe, a gente descobre o Pelé do computador.