Letícia Mori, Da BBC News Brasil em São Paulo
Quase um mês após a morte do líder indígena Aritana Yawalapiti, aos 71 anos, por covid-19, seu filho mais velho, Tapi Yawalapiti, relembra à BBC News Brasil como eram as conversas cotidianas com o pai.
Um dos mais importantes e respeitados líderes dos povos do Território Indígena do Xingu, Aritana tinha ascendência yawalapiti e kamayurá e falava dez línguas, de pelo menos três troncos linguísticos diferentes.
“Quando meu pai falava comigo em yawalapiti, eu compreendia tudo e respondia em kamayurá, a língua da minha avó, mãe do meu pai”, explica Tapi em português, uma das cinco línguas faladas por ele.
Quando seu pai morreu, Tapi estava estudando a língua yawalapiti com Aritana. Sua partida foi um golpe duro para a sobrevivência deste idioma, que está ‘em perigo crítico’ de desaparecer, segundo a Unesco.
“A perda do meu tio Aritana é a perda de 98% da nossa língua”, disse Watatakalu Yawalapiti, sobrinha de Aritana, em uma declaração após a morte do tio.
Tapi explica que ainda há alguns outros falantes da língua yawalapiti vivos — dois tios mais velhos, por exemplo — mas que seu pai tinha um conhecimento mais profundo, mais técnico, que tentava passar para os mais jovens.
A língua yawalapiti não é a única em risco de desaparecer.
O Brasil tem pelo menos 190 idiomas que correm o mesmo risco, segundo o Mapa das Línguas em Perigo da Unesco. A morte de diversos anciãos indígenas devido à pandemia torna essa situação ainda mais crítica.
Sem controle, a epidemia de covid-19 ameaça destruir, junto com a vida de milhares de pessoas, culturas inteiras de alguns povos, levando ao que representantes indígenas chamam de “verdadeiro extermínio de etnias”.
“Os anciãos que estão desaparecendo são as bibliotecas vivas de todo esse conhecimento tradicional — da língua, dos costumes, das danças, da música. Esse conhecimento se preserva nos mais velhos, e é através deles que chega aos jovens e se reproduz”, explica Angel Corbera Mori, professor de linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em línguas ameríndias.
As perdas de idosos indígenas acontecem no país todo. Só no Xingu, a covid-19 causou a morte do ancião Juca Kamayurá, do líder Jamiko Nafukuá e de Mamy Kalapalo, chefe da aldeia Kuluene.
Entre os Kokama, no Amazonas, ao menos 37 morreram com sintomas de covid-19, segundo a Associação dos Índios Kokama Residentes no Município de Manaus (Akim), a maioria idosos.
Em Alter do Chão, no Pará, a doença levou Lusia dos Santos Borari, de 87 anos, ainda no início da pandemia, em março. Em Roraima, morreu em junho Bernaldina José Pedro, anciã de 75 anos do povo macuxi que vivia na na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Em uma ação levada ao STF, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) disse que “falhas e omissões” do poder público no combate à epidemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros estão levando a um “verdadeiro genocídio”.
Essas populações têm, segundo a entidade, uma taxa de letalidade pelo vírus de 9,6%, enquanto, na população em geral, a taxa é de 4%, segundo o Ministério da Saúde.
A Apib diz ainda que o governo está não apenas falhando, mas ativamente colocando os indígenas em risco. Diversos pesquisadores já alertaram para o risco de a pandemia dizimar essas populações no país.
O governo nega que haja negligência, mas batalhou na Justiça para não precisar cumprir os pedidos da Apib.
No entanto, o STF determinou em votação unânime que o governo tome medidas para garantir o combate à pandemia e atenda a medidas específicas pedidas pela entidade, como a criação de uma barreira sanitária e retirada de invasores de terras indígenas.
Perda irreparável
Bernaldina José Pedro, de 75 anos, era uma guardiã dos costumes tradicionais e da língua macuxi. Ela tinha acabado de voltar para sua casa, na comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, quando morreu de covid-19 no fim de junho, após 11 dias de batalha contra a doença.
Ela contraiu o coronavírus na comunidade pouco tempo depois de voltar de uma temporada no estúdio do filho adotivo (também em Roraima) o artista macuxi Jaider Esbell, que estava aprendendo a falar macuxi com a mãe.
Essa língua não corre risco de desaparecer, porque tem muitos falantes e até já foi sistematizada em dicionários, mas muitos conhecimentos tradicionais se foram com Bernaldina.
“Ela conhecia um vocabulário completo, uma variedade enorme de construções”, afirma Jaider. “É uma perda irreparável.”
Ele era aprendiz de macuxi, um trabalho que envolvia muitas práticas. “Ela passou um período fazendo panelas de barro, fazendo a tradução dos cantos comigo, falando os nomes dos materiais, dos elementos (na língua materna). Infelizmente, esse processo foi interrompido”, lamenta.
“Embora minha língua esteja salva, é sempre difícil manter, porque existe no Brasil a ilusão de uma língua padrão (o português), de uma língua ‘nacional’, e as crianças cada vez mais estão aprendendo só o português e tendo menos contato com a língua materna”, afirma Jaider, que pretende fazer um memorial em nome de Bernaldina.
Ele diz que vai continuar fazendo as atividades que ela sempre quis preservar, como os trançados, os cantos, os remédios, as panela de barro, atividades culturais.
Jairder conta que a comunidade da mãe em Roraima sofreu muito com a pandemia, especialmente no início. “A gente teve uma onda bem difícil, perdemos muitos professores e anciãos”, diz.
Reunindo um povo
Em meio à mais recente luta para que que seu direito à saúde seja garantido, os yawalapiti continuam sua batalha de décadas para preservação do seu povo, que já esteve próximo de desaparecer.
“A nossa história é muito longa, meu povo quase foi extinto”, conta Tapi. “Morreram muitos e restaram só seis ou sete pessoas, pré-adolescentes, que foram morar em outras aldeias.”
A última aldeia desapareceu, e os yawalapiti que restaram cresceram em meio a outros povos, falando outras línguas no dia-a-dia.
“Eles ficaram muito tempo morando longe, acabaram não tendo mais contato. Então, havia o meu povo, mas ele estava espalhado”, conta Tapi.
Com a chegada dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, sertanistas que lutaram pela demarcação de terras indígenas no Xingu, veio também seu alerta de que ameaças como os garimpos e o desmatamento estavam cada vez mais próximas.
Líderes indígenas então se atentaram para a importância da preservação de seus povos e tiveram ajuda dos irmãos Villas Bôas nessa tarefa.
Paru, avô de Tapi e pai de Aritana, foi um dos líderes responsáveis por reunir novamente os yawalapiti espalhados e reativar a antiga aldeia.
Hoje, Tapi trabalha para concluir seu mestrado na Universidade de Brasília, para o qual estudou e relatou a língua yawalapiti com o pai. A defesa da dissertação teria sido em maio, mas foi adiada para novembro por causa da pandemia. “Esse projeto será uma grande lembrança do meu pai”, conta ele.
Além de chefe da aldeia Tuatuari, Aritana era defensor do território indígena, ativista pelos direitos dos povos do Xingu e guardião da cultura para os kamayurá e yawalapiti — e até para outros povos que não faziam parte da sua ascendência.
“Meu pai era visto como uma liderança geral no Xingu”, diz Tapi, que agora tem a missão de assumir o papel de líder da etnia e defensor do Xingu que era de seu pai.
“O Xingu está de luto, mas eu recebi muita força, muita gente dizendo ‘você agora assumirá o papel do seu pai’. É uma grande responsabilidade”, diz ele.
“Nossa cultura é muito forte — os jovens dançam, pintam, estão cantando as músicas, mas o que está enfraquecido é a língua materna”, afirma.
Faz parte de seus planos produzir um livro didático para ensinar a língua para crianças e jovens de seu povo — muitas delas falam línguas como kamayurá.
O quanto o idioma é falado de forma fluente por gerações mais jovens e usado no dia a dia são alguns critérios para estabelecer o quanto ele está em perigo, explica o linguista Angel Corbera Mori.
“A preservação da língua é parte essencial da cultura, sem falantes, ela desaparece, e, com ela, se vão se aspectos muitos centrais.”
A entrada de missionários religiosos nos territórios sem autorização, que visam converter os indígenas e fazem os jovens terem menos interesse pela cultura tradicional, é apontada por ele como uma das principais ameaças à preservação das culturas indígenas.
Mori ressalta que, no momento, no entanto, as preocupações são muito maiores. “A ameaça hoje é aos próprios falantes. A preocupação no momento é com a vida.”