Em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de homicídios. Segundo o estudo, a discrepância entre as taxas de homicídio dos dois grupos significa que para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos. Em Alagoas, para cada não negro vítima de homicídio, morreram 17 negros.
Por Cíntia Acayaba e Léo Arcoverde, G1 SP e GloboNews
A taxa de homicídios de negros no Brasil saltou de 34 para 37,8 por 100 mil habitantes entre 2008 e 2018, o que representa aumento de 11,5% no período, de acordo com o Atlas da Violência 2020 divulgado nesta quinta-feira (27).
Já os assassinatos entre os não negros no mesmo comparativo registraram uma diminuição de 12,9% (de uma taxa de 15,9 para 13,9 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes).
O Atlas da Violência é elaborado a partir de uma parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto de Econômica Aplicada (Ipea) e tem como base de dados os números apresentados pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde.
O relatório mostra que, em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de todos os homicídios.
“É como se estivéssemos falando de países diferentes, tamanha a disparidade. A gente percebe que a política implementada, seja Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), seja Estatuto do Desarmamento, seja política local implementada por prefeitura ou governo, de algum modo atua na prevenção, é capaz de prevenir a morte de pessoas, mas de pessoas não negras – brancos, amarelos e indígenas”, disse Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e uma das autoras do estudo, em entrevista coletiva nesta quinta.
— Foto: Juliane Monteiro/Arte G1
Os negros são representados pela soma de pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE, e os não negros pelo seguinte grupo: brancos, amarelos e indígenas.
Segundo o Atlas da Violência, a discrepância entre as taxas de homicídio dos dois grupos significa que, na prática, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos.
“Esses números nos ajudam a traduzir em números esse enorme abismo que existe entre a população negra e não negra, e a entender um pouco melhor sobre como o racismo se manifesta e o quanto estamos completamente insensíveis por isso. Ontem vimos os atletas da NBA se recusando a entrar em quadra por causa da violência. Grandes esportistas estão assumindo essa pauta política, antirracista, como algo urgente. É preciso um esforço para que no Brasil essa pauta se torne prioridade como é nos EUA”, analisou Samira Bueno.
Para os autores do estudo, a forte concentração dos índices de violência letal representa “das principais expressões das desigualdades raciais existentes no Brasil”.
“Enquanto os jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento ao longo dos anos, entre os brancos os índices de mortalidade são muito menores quando comparados aos primeiros e, em muitos casos, apresentam redução”, diz um trecho do Atlas da Violência.
Diferença entre estados
A análise das taxas de homicídio por 100 mil habitantes por estado aponta que a chance de um negro ser assassinato é maior nas regiões Norte e Nordeste. Em 2018, Roraima foi o estado com a maior taxa (87,5), vindo em seguida Rio Grande do Norte (71,6), Ceará (69,5), Sergipe (59,4) e Amapá (58,3).
Em Alagoas, para cada não negro vítima de homicídio, morreram 17 negros. A taxa nacional é 2,7, ou seja a cada não negro morto, 3 negros morreram por conta da violência.
O estudo aponta que, entre 2008 e 2018, houve estados que registraram aumento das taxas de homicídios de não negros superiores às de negros. É o caso do Amapá, que registrou aumento de 196,6% nas taxas de homicídios de não negros e de 61% nas de homicídios de negros, seguido do Amazonas, que registrou um aumento de 137,8% nas taxas de homicídios de não negros e de 53,4% de negros. De acordo com o estudo, isso “não necessariamente significa que o racismo e a racialização deixem de incidir sobre os eventos violentos”.
Segundo o Atlas da Violência, isso ocorre por que a região amazônica apresenta “população descendente de três matrizes principais (negra, indígena e branca), sendo que as relações raciais (…) combinam essas matrizes com identificações que consideram o elemento indígena”.
“As mortes de negros puxam duas vertentes – primeiro que o negro sofre discriminação no trabalho e na diferença educacional, por exemplo, então é uma trajetória que o torna mais vulnerável à violência. Além disso, tem o racismo que mata – a ideia do negro perigoso, uma ideia que muitas vezes culmina no uso da força contra ele”, explicou Daniel Cerqueira, coordenador da pesquisa, na coletiva online.
Mulheres
De acordo com o levantamento, em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil, uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino, o que indica que uma mulher foi assassinada a cada duas horas.
Entre 2008 e 2018, o Brasil teve um aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres, e a taxa da violência letal também tem diferença entre um estado e outro.
Em 2018 a taxa de homicídios mais do que dobrou no Ceará (278,6%), Roraima (186,8%) e Acre (126,6%). Já as maiores reduções foram no Espírito Santo (52,2%), São Paulo (36,3%) e Paraná (35,1%).
“Essas altíssimas taxas são fruto de dois fenômenos: a violência doméstica, que cresce há pelo menos 3 anos, e a nova dinâmica no crime organizado. Vimos muitos episódios de mulheres decapitadas, que não faz parte da linguagem dos grupos organizados no sudeste. Existe uma nova gramática das facções para as mulheres, seja por entrar no tráfico, seja porque se relaciona com um homem faccionado. Ajuda a entender como destoam os números no Brasil”, explicou Samira Bueno.
Nos últimos 10 anos, os homicídios de mulheres negras, especificamente, aumentaram 12,4%, enquanto os assassinatos de mulheres não negras reduziram 11,7%.
“Ao longo dos últimos 10 anos, a diferença entre a violência contra mulheres negras e não negras se acentua, ao invés de reduzir. Se conseguimos reduzir a violência letal foi para uma camada, não pra todo mundo”, apontou. “A cada ano vemos uma oscilação pouco significativa para mais ou para menos, mas a cor da mulher é que muda os números. Que politica pública é essa que não protege a mulher negra?”, questionou.
Crianças e adolescentes
Os dados também alertam para como a violência atinge a juventude do país, considerando pessoas de 0 a 19 anos. 53,3% do total de vítimas de homicídios registrados em 2018 são jovens.
A taxa de homicídio é de 27,8 a cada 100 mil no Brasil. Essa taxa dobra para 60,4 para cada 100 mil quando o recorte é das vítimas jovens.
“Olhando de 1980 a 2018 observamos 265 mil crianças assassinadas no Brasil. É uma barbárie, um número chocante, que faz a gente perceber que tem algo errado quando a gente mata 265 mil crianças e adolescentes”, disse Daniel Cerqueira, coordenador da pesquisa.
A diferença entre os estados também é grande. Em Roraima chega a 258 homicídios a cada 100 mil jovens, no Rio Grande do Norte, a 226 e no Amapá a 224. Enquanto isso, em São Paulo há 24 homicídios a cada 10 mil jovens, Santa Catarina, 39, e Minas Gerais, 59.
Segundo os pesquisadores, o mapeamento mostra como o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e o Estatuto do Desarmamento, ao longo dos anos, ajudaram a reduzir os índices.
“Depois do ECA, implementado em 1990, a taxa de homicídios de crianças e adolescentes diminuiu de 7,8% para 4,9% ao ano. Com o desarmamento, em 2003, o ritmo foi de 1,7% ao ano”, apontou Cerqueira. “Considerando apenas a taxa de homicídios por arma de fogo, os números mostram que depois dos estatutos, a morte de jovens por arma de fogo caiu a 1/5 do que era”, disse Cerqueira.
De acordo com o atlas, os homicídios de jovens por arma de fogo cresciam a uma velocidade média de 9,4% ao ano antes do ECA. Depois do ECA, entre 1991 e 2003, o índice passou para 7,9% ao ano, e diminuiu novamente, substancialmente, após 2003, para 1,9% ao ano, com o Estatuto do Desarmamento.