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Mariana: cinco anos de lama impregnada no corpo

Pescadoras do falecido Rio Doce expõem marcas profundas dos rejeitos da mineração, sem perspectiva de cicatrizar

Texto | Mariana Assis

Eliane Balke. Crédito: Isis Medeiros

Por  mais de 20 anos, a pesca diária definia o corpo de Eliane Balke. A pele dourava com o sol enquanto ela fazia o ofício no mangue, no mar ou no rio. Os braços e pernas eram  torneados pela força diária de lançar a rede em busca de peixe. As mãos, calejadas dos frequentes cortes das lâminas que fisgam o animal na água. Eliane nasceu e tornou-se mulher às margens do Rio Doce, no trecho em que ele banha o município de São Mateus, no Espírito Santo. 

Há exatos cinco anos, a lama do rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana – a cerca de 580 km de distância, em  Minas Gerais – , inundou o rio e o corpo de Eliane e de mais uma 11,7 mil pescadores, que, como ela, deixaram de ter um ofício e foram denominados atingidos. E isso não deixa marcas de orgulho, tal qual a pesca que sustentava famílias. 

Os rejeitos de minério poluíram os cursos d’água, os peixes e o corpo de pescadoras como Eliane Balke, Eliana Natalli, Adenize Sena, Ana Paula Santos. Neste dia 5 de novembro de 2020, essa reportagem vai percorrer o Rio Doce contando cada ano que se passou pelas marcas deixadas nessas mulheres desde o crime cometido pela Samarco Mineração S.A (empreendimento entre Vale S.A e a BHP Billiton).

“Eu entrei em depressão e tive problemas de coração. Você fica angustiada porque olha para um lado e não vê solução, olha para o outro e não vê solução”, afirmou Natalli, também acostumada a viver nas águas praticamente 24 horas por dia. A avalanche de lama levou o rio e a fez questionar se a vida fora da água fazia sentido. Tentou suicídio duas vezes. “Bate desespero de você não poder ajudar a sua família, como eu fazia”.

Os rejeitos invadiram a mente delas. Adenize, que trabalhava com pesca em água doce, rio, e em manguezais, também começou a ter ansiedade, enfrentando um quadro depressivo. 

O aumento significativo de problemas psicológicos adicionados à sobrecarga doméstica afetou brutalmente as mulheres. Isso foi apontado na pesquisa “A situação das mulheres atingidas pelo desastre do Rio Doce a partir dos Dados da Ouvidoria da Fundação Renova”, encomendada pelo Ministério Público Federal (MPF) à Fundação Getúlio Vargas (FGV). 

Mas, para a Renova, segundo o relatório da FGV, os problemas de ordens mentais estariam relacionado ao uso de drogas, e não às instabilidades financeiras e impacto das tarefas da casa em excesso.

O rompimento

Antes de continuar esse percurso pelas cicatrizes abertas com a lama,  relembramos alguns números aqui: mais de 40 milhões de m³ de rejeitos. Tudo isso despejado de uma vez sobre as estruturas de um distrito inteiro, o Bento Rodrigues querido por aproximadamente 600 moradores que ficaram órfãos de suas terras até hoje. Esse volume de lama invadiu ainda  cidades vizinhas e seguiu o trajeto do Rio Doce, consumindo com todo recurso ali existente até a foz, em Linhares (ES). 

Nesse percurso, 19 pessoas morreram, outras milhares sobrevivem marcadas pelo maior crime ambiental do Brasil – uma degradação de 240 hectares de Mata Atlântica. Esses nomeados atingidos estão em 41 cidades entre Minas Gerais e Espírito Santo e três reservas indígenas.

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Da reprodução à morte

Eliana Natalli também vivia nas águas de Linhares (ES) onde pescava em rios e lagoas. Até novembro de 2015, acordava sempre às 5h da manhã, arrumava os apetrechos de trabalho, colocava-os no carro e saía para acampar em algumas ilhas dentro do Rio Doce. Permanecia por lá de três a quatro dias para depois fazer a venda do pescado. 

O  rompimento da barragem ocorreu bem na época da piracema, período em que a pesca é suspensa para a reprodução das espécies. Em fevereiro, Eliana voltaria para dentro da água com seus materiais de trabalho. Esse mês nunca mais chegou e os peixes, ao invés de se reproduzirem, morreram. Quatorze toneladas deles foram encontrados mortos.

A crise entrou na casa das famílias ribeirinhas silenciosamente, ouvia-se apenas o barulho de uma correnteza fúnebre, do enterro de um rio. As informações demoraram a ser ditas. “Eu não podia imaginar que aquela notícia da barragem que se rompeu lá em Mariana teria consequências tão graves na minha vida”, aponta Balke. 

Adenize Sena não esperava também, mas orava, lá de Campo Grande, nativa de Barra Nova em São Mateus, no Espírito Santo, para que o estrago não fosse significativo. Mas foi e, em menos de 15 dias, o ecossistema que essas mulheres respiravam foi coberto de lama.  “O que vai ser do meu trabalho? O que vou fazer daqui em diante?”, a oração foi substituída por perguntas nunca respondidas.

Adenize Sena trabalhando no mangue. Acervo pessoal.

A pesca artesanal 

Um profissional registrado, de forma autônoma ou de economia familiar, utilizando embarcações de pequeno porte caracteriza a pesca artesanal, conforme a legislação brasileira. Cerca de 700 mil pessoas atuam nas águas brasileiras dessa forma, contabilizam dados da extinta Secretaria Especial de Agricultura e Pesca.  São esses trabalhadores que respondem por 50% do total do pescado produzido no país. E pescadores artesanais abrangem tanto pesca em água doce, como no mar, rios e também nos manguezais.

Talvez alguns ainda tenham no imaginário homens pescando, mas mulheres têm assumido esse ofício  muitas vezes a partir de uma tradição familiar. 

O rio é a universidade delas. A meteorologia que se aprende na toada do vento. Não precisam ler o nome das espécies em livros, sabem no olho e no toque cada tipo de peixe, o modo dos caranguejos. Eliane Balke descreve as águas pelo cheiro do mar e do mangue, pelas cores refletidas nas ondas. A cada hora do dia admira “a beleza do rio, no ir e vir do ofício”

Labuta que não é feita só de encantamento. O machismo também passa pelas redes dessas pescadoras. “Eles (os homens) só passam a realmente a valorizar a pescadora quando veem elas soltando uma rede”, cita Eliana Natalli . 

Os fenômenos da natureza são outros desafios no trabalho delas, com sol forte, ventanias, tempestades. 

“Não é só ir lá, colocar a rede e pegar o seu pescado. Está muito relacionado à força, determinação, coragem”, afirma Natalli, exemplificando isso com duas perguntas: “Você está disposto a pegar uma tempestade? Ou ser picado por algum animal peçonhento?”

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Eliana Natalii. Acervo pessoal.

Mas elas escolhiam enfrentar, pois era daquela lida diária que vinha a fonte de renda. E isso significava liberdade, algo inegociável para as pescadoras. 

Presas ao estigma de “atingidas”

De repente, elas deixam de ser livres, pescadoras corajosas e fortes para serem discriminadas como  preguiçosas e avessas ao trabalho. Assim são taxados os “atingidos” que recebem o auxílio mensal da Fundação Renova, entidade que trabalha na reparação dos danos causados pelo rompimento. “Nossa identidade está se perdendo junto com a lama”, desabafa Natalli. 

É como se elas nunca tivessem dedicado anos a uma profissão, que até isso a lama tivesse apagado.  “Eu  sou pescadora profissional com RGB, eu tiro o meu sustento de dentro das águas. Esquecem o que você é e passam a observar como está agora”, lamenta ter que receber dinheiro de uma empresa e ser mal vista por isso hoje.

Mas, mesmo para receber esse auxílio, houve transtornos. Ao se cadastrar, Balke foi identificada pela empresa como “lavadeira” e não como pescadora. Era como se, mais uma vez, seu ofício tivesse sido levado pela lama. Recorreu da classificação imposta e conseguiu, enfim, o reconhecimento  como pescadora, que sempre foi.

Algumas pescadoras foram registradas como auxiliar de pesca durante o cadastramento porque a categoria pesca foi desagregada das atividades relativas à “cadeia de pesca”. Essa situação vivida por Balke e outras mulheres é descrita no relatório da pesquisa da Fundação Getúlio Vargas apresentada ao MPF.

Eliane Balke questiona a falta de diretrizes específicas de amparo às mulheres no atendimento da Fundação Renova. 

A pesquisa da FGV também aponta isso:  em contextos de desastres, as vulnerabilidades sociais tendem a ser agravadas e as políticas de mitigação de danos precisam colocar o gênero em posição de protagonismo. 

As medidas apresentadas às atingidas são insuficientes, conclui  o estudo. Além disso, a Renova não estaria sendo transparente  em relação aos encaminhamentos  propostos aos casos de vulnerabilidade. Das 479 demandas mapeadas, pouco mais da metade, 270, tiveram algum andamento. 

Conforme o relatório, a Fundação alegou que uma parcela considerável dos casos decorria de  problemas como “moradia”, “saúde” e “conflitos familiares”, o que, para a Renova, não seriam  contemplados pelos programas assistenciais.

Com o presente comprometido e um futuro incerto, essas mulheres reúnem forças para seguir lutando todos esses anos por uma reparação justa dos danos, justamente no  passado, o que elas têm de melhor. Lembranças do tempo que parece distante mas, sim, existiu, com alegrias e recursos para um bem viver. 

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Perderam a  autonomia, restou medo 

Dos pescados vinha a fartura necessária para dar conta do consumo próprio, e também para vender. Significava autonomia. A lama trouxe escassez, representando temor. Ana Paula, de Barra Seca, em Linhares (ES), perde o sono com frequência e se mantém em tensão constante sem saber se  vai conseguir colocar comida na mesa para a família. 

O papel dessas mulheres como chefes de família também foi negligenciado. 

As águas, que sempre foram familiares à Natalli, hoje trazem medo. “A cada dia que você se levanta vê a água do Rio Doce de uma cor diferente.”

A Fundação Renova, fala Ana Paula, está afirmando que a água já pode beber, que o peixe já pode comer. “Mas por que eles mesmo não comem o pescado?”, questiona a pescadora, que mesmo com um relatório formal avaliando as condições da água do Rio Doce, não confia mais. Hoje não há comprovação de contaminação, mas não é descartada uma surpresa no futuro. 

Ana Paula pesca tanto em águas doces, salgadas, rios, manguezais. “É de tudo um pouco”, ela diz.

Ana Paula Santos. Crédito: Isis Medeiros

As pescadoras sentem a lama impregnada em seus corpos desde o rompimento da barragem. E não é a  lama encontrada no mangue, quando elas ia trabalhar e até brincavam com a terra molhada. 

É o lamaçal poluidor das águas e dos ares. Nas cidades de Mariana e Barra Longa, a poeira das casas contém metais pesados. Uma reportagem de Alice Maciel e Rute Pina, publicada na Agência Pública no ano passado, revelou um documento, até então oculto. Trata-se do Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH) realizado ao longo de 2018 em 8 distritos, que alertou a presença de altas concentrações de cádmio, níquel, cobre e zinco nas proximidades das casas das pessoas.

Respostas

O Desabafo Social procurou a Fundação Renova para questionar quais são as políticas específicas para atendimento das atingidas. Em nota, a Fundação disse que reconhece o trabalho exercido pelas mulheres e todas que comprovaram que exerciam atividades econômicas e/ou reprodutivas, são titulares para receberem o auxílio financeiro emergencial. A Fundação, no entanto, não especificou quais são os programas assistenciais desenvolvidos para atender as mulheres. 

Ainda a respeito da assistência aos atingidos, a Fundação Renova disse que:“Imediatamente após o rompimento da barragem de Fundão, tendo como premissa a garantia dos direitos humanos básicos – acesso aos primeiros socorros, apoio e atendimento psicológico aos familiares das vítimas e de pessoas desaparecidas, acesso à informação, à água potável, à moradia e à alimentação adequada. Passado o período emergencial, os esforços das áreas de Saúde e de Proteção Social foram concentrados no apoio às políticas públicas dos municípios.

A Fundação Renova argumenta que não é de sua competência atuar em  situações de violência doméstica, no entanto, presta apoio especializado e a informar as autoridades públicas competentes. 

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Quanto às distorções das profissões das pescadoras, a Renova disse que: “Desde 2017 o encerramento do programa vem sendo discutido no âmbito da governança – CIF e Câmara Técnica –, que é a esfera de discussão da pauta com os atingidos, mas não houve consenso quanto aos critérios técnicos. Desde novembro de 2019, o assunto está em discussão na 12ª Vara Federal.” Quanta a qualidade da água do Rio Doce, a Renova disse que a água está própria para o consumo, segundo monitoramentos feito pela entidade. Quanto ao Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH), afirmou que não há evidências de que a água esteja contaminada. Confira a nota na íntegra:

Errata: A reportagem errou a localização da entrevista Eliana Natali que mora em Linhares (ES), não em São Mateus como escrevemos. Também cometeu o errou em não especificar que pesca artesanal inclui as categorias de pesca no mangue, no rio, água doce e em manguezais. A reportagem foi atualizada às 19:00 no dia 05/11/2020

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