Por Alex Castro
Escuto muito: homens reclamando da histeria das feminazis, pessoas cis reclamando da agressividade das militantes trans, pessoas brancas reclamando do vitimismo do movimento negro, pessoas religiosas reclamando da chatice das ateias militantes.
Essa gente não tem mesmo nenhuma empatia?
* * *
É comum ouvir as pessoas privilegiadas (homens, brancas, cis, ricas, etc) reclamarem que as militantes de causas marginalizadas (movimento negro, LGBT, trans, feministas, indígenas, ateus, etc) são agressivas, defensivas, estressadas, etc.
Mas é fácil ser uma pessoa calma e tranquila quando se está sentada no topo da pirâmide. Quando se possui todas as vantagens e todos os direitos e todas as seguranças. Quando não se é diariamente encoxada no metrô ou revistada pela polícia. Quando suas comunidades não são invadidas ou remanejadas ou inundadas.
Talvez as militantes estejam mais estressadas que você, ó pessoa privilegiada, porque além de sofrer tudo o que sofrem todas as pessoas marginalizadas, elas também veem.
Veem e gritam.
Veem a opressão e a repressão, veem as mortes e os estupros, veem a dor e a desigualdade.
E gritam contra a outrofobia de todas as maneiras, contra a corrente, contra a maioria, passando por chatas, ouvindo que são defensivas, falando quase sozinhas, mas sempre falando, sempre gritando, sempre na luta.
Então, meu conselho às pessoas privilegiadas é: não reclame da agressividade de quem sofre e combate violências que você nunca sofreu nem combateu.
Talvez vocês também devessem combater agressivamente o racismo & o machismo, a homofobia & a transfobia.
* * *
Querida pessoa privilegiada,
Claro que você fica incomodada com o discurso anti-establishment & anti-outrofóbico, seja ele ateu ou trans*, feminista ou LGBT, anti-racista ou anti-consumista, etc ou etc.
Esse discurso é feito, pensado, articulado especificamente pra te incomodar.
Ao reclamar do incômodo, você está só confirmando que o alvo desse discurso, de fato, era você.
Então, agora que a mensagem atingiu o destino, é hora de botar a mão na consciência, refletir sobre a origem desse incômodo, questionar seus privilégios, repensar sua outrofobia.
* * *
Sempre que escrevo variações do trecho acima, chamando as pessoas privilegiadas a “botar a mão na consciência”… sabem o que acontece?
Elas se sentem atacadas.
O mecanismo do privilégio outrofóbico é esse:
Você tem tudo sempre tanto a seu favor que um mero chamado para “botar a mão na consciência” já te parece um “intolerável ataque aos vilões da história”.
O que te faz uma pessoa privilegiada é isso:
Sentir-se sinceramente atacada e vilificada quando alguém só te pede pra refletir sobre seus privilégios.
* * *
Quem faz parte do grupo dominante, quem passou os últimos séculos pisando & dominando, matando & explorando, não tem que pedir respeito: tem que dar respeito.
Não é a pessoa branca que deve pedir respeito à negra.
Não é o homem que deve pedir respeito à mulher.
Não é a pessoa hétero que deve pedir respeito à homossexual.
Não é a pessoa cis que deve pedir respeito à trans*.
Não é a pessoa cristã que deve pedir respeito à ateia.
Para demonstrar que não é uma canalha, para demonstrar que entende a história de dominação do seu grupo sobre outras pessoas, tem que acontecer justamente o contrário:
É a pessoa branca que deve demonstrar respeito à negra.
É o homem que deve demonstrar respeito à mulher.
É a pessoa hétero que deve demonstrar respeito à homossexual.
É a pessoa cis que deve demonstrar respeito à trans*.
É a pessoa cristã que deve demonstrar respeito à ateia.
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço.
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço.
* * *
Se você acha que mulher que defende seus direitos é feminazi; que cotas são racismo reverso; que aprovação do casamento homoafetivo é ditadura gay; que existem marajás vivendo com os $134 do Bolsa-Família; que os militares nos salvaram em 1964; e outras tantas opiniões flagrantemente outrofóbicas; então, sim, você tem razão de me acusar de radical e intransigente.
Eu realmente não quero diálogo com você. Não vou responder suas provocações. Não vou contra-argumentar suas ideias.
Dialogar com você seria dar à sua outrofobia uma validação que ela não merece.
Não há conversa possível.
* * *
Sartre: “detesto vítimas que respeitam seus carrascos.”
Sartre: “detesto vítimas que respeitam seus carrascos.”
As pessoas que mais mandam são as que se sentem mais acuadas pela patrulha de quem não manda nada.
Para as pessoas que fazem parte do status quo e estão acostumadas a ser a opinião dominante e nunca interpelada, qualquer contradiscurso, mesmo marginalizado e quase impotente, é sempre visto como intolerável:
“Feminismo radical”, “racismo reverso”, “ateísmo militante”, “ditadura gay”, etc.
O ideal da outrofobia é a “feminista feminina”, a “negra que sabe o seu lugar”, a “atéia calada”, a “gay dentro do armário”.
Para as pessoas outrofóbicas, é muito fácil ser tolerante com a Outra: basta ela ficar quieta e nunca me lembrar que existem no mundo opiniões diferentes das minhas.
* * *
Entendo as pessoas privilegiadas defendendo seus privilégios. Não entendo a militante negra reclamando das feminazis, a ateia se insurgindo contra o racismo reverso, a gay incomodada pelas ateias militantes.
Falta espelho e falta solidariedade.
* * *
Quando afirmo minha condição de privilegiado, algumas pessoas acham que estou me gabando.
Mas a pior coisa que vejo são as pessoas privilegiadas que nunca se reconhecem privilegiadas… justamente para não assumirem as responsabilidades do privilégio.
As pessoas privilegiadas devem reconhecer seus privilégios não para se gabar (ou para se envergonhar), mas porque só assim podem assumir sua responsabilidade de ajudar as não-privilegiadas. Só assim podem começar a compensar a sociedade por tudo o que receberam em excesso. Só assim podem começar a abrir mão de alguns privilégios em prol de quem tem menos.
E eu sou uma pessoa privilegiada em quase todos os quesitos.
Isso não me faz o vilão. Isso não me faz o inimigo. Isso não significa que sou culpado pelos crimes da nossa sociedade outrofóbica, machista, racista, elitista, homofóbica, transfóbica, intolerante.
Mas significa que, como beneficiário desses crimes, tenho a responsibilidade de ajudar. De me tornar parte da solução e não do problema.
Sou um homem branco hétero cis, classe média alta e pós-graduado (e também pró-feminista, esquerdista, ateu, praticante de BDSM e poliamor), que consciente do lugar de privilégio que ocupa em nossa sociedade outrofóbica, racista, machista, homofóbica, transfóbica e elitista, tenta utilizar esses privilégios para melhor pesquisar, refletir e promover pautas como feminismo, lutas sociais, consumismo, movimento negro, narcisismo, escravidão, trabalho doméstico.
* * *
Não se muda o mundo respeitando a opinião de quem te oprime.
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