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A jornalista Adriana Araújo,48 anos, e a estudante de medicina Giovanna, 23 anos Foto: Divulgação

Sociedades

‘As pessoas esquecem que a criança com diferença tem pai também; o olhar recai mais sobre a mãe’

Jornalista Adriana Araújo relata em livro emociante sua trajetória ao lado da filha Giovanna, que nasceu com hemimelia fibular, uma síndrome congênita de causa desconhecida que a trouxe ao mundo sem um osso na perna e com apenas dois dedos na mão direita

Por Gabriela Germano, jornal O Globo

Em casa, a garotinha pergunta: “Mãe, se eu rezar muito, Deus vai fazer nascer dedos na minha mão?’”. Numa consulta, o médico diz: “É melhor amputar a perna”, mas a mãe não aceita esse diagnóstico. A jornada de Adriana Araújo, de 48 anos, ao lado da filha Giovanna, hoje uma estudante de Medicina de 23, não foi nada fácil.

A jornalista afirma, no entanto, que tão difícil quanto responder a questões complexas e receber diagnósticos frios foi lidar com o preconceito e o olhar de piedade das pessoas. No livro “Sou a mãe dela” (Globo Livros), a autora narra sua vida de mãos dadas com sua menina, que nasceu com hemimelia fibular, uma síndrome congênita de causa desconhecida que a trouxe ao mundo sem um osso na perna e com apenas dois dedos na mão direita.

Em entrevista, a jornalista conta detalhes da história, fala das dificuldades em criar uma menina “com diferença”, mas afirma que sempre rejeitou o título de “coitadinha” para a filha.

— Sempre pedi pra não chamarem Giovanna de coitadinha, e sim para me ajudarem a formar uma adulta com autoestima. Mães de crianças que nascem com diferença precisam de respeito e de apoio — diz a autora.

Ela afirma que seu livro é uma forma de expressar sua gratidão:

Adriana e Giovanna ainda bebê: ‘Minha conexão com minha filha é única’, diz a jornalista Foto: Arquivo Pessoal

— Ainda que tenhamos ouvido muita coisa ruim, eu recebi muita ajuda. Não é um manual porque eu não acredito em receitas. Mas espero que minhas mensagens sejam úteis, além de reverter os royalties arrecadados pela venda do livro para mães que precisam de uma mão estendida.

No início do livro, sua filha afirma que lutou contra sua decisão de escrevê-lo. Mas depois de ler os textos, mudou de ideia. Como decidiu publicá-lo?

Na verdade, ele não nasceu como um livro. Escrevi durante quatro anos. Comecei em 2015, quando redigi uma carta para a Folha de S.Paulo sobre um episódio traumático, muito marcante, em que um médico sugeriu a amputação da perna da minha filha. Ela foi publicada e registrei lá que gostaria de escrever sobre outros médicos, os anjos de jaleco que apareceram na nossa vida, o desejo de falar sobre eles sempre existiu.

Mais tarde, quando Giovanna estava na fase pré-vestibular, um período de muita ansiedade e reflexões tanto pra ela quanto para mim como mãe, eu vi que não tinha mais as decisões na minha mão. Porque quando você tem que tomar decisões sobre cirurgias, resolver questões médicas sobre um bebê, ainda que seja muito duro, elas eram todas decisões minhas. Mas quando ela começa a entrar na vida adulta, as decisões eram dela. Nesse momento, eu entendi que tinha chegado o tempo também para as minhas reflexões, para eu olhar no retrovisor.

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Essas reflexões tornaram o processo de escrita do livro muito difícil?

Comecei a escrever terapeuticamente. Era como um desabafo, relembrando momentos marcantes. E, quando comecei esse processo, enxerguei que a jornada era pautada por frases, frases que 20 anos depois eu precisava digerir, repensar. Quando escrevi sobre os dois anjos de jaleco, o primeiro deles é o Doutor Marceneiro, falei para Giovanna pela primeira vez que gostaria que aquilo virasse um livro, porque eu gostaria que eles lessem. Ela resistiu à ideia, mas me enrolava: ”ah, tá, vai escrevendo aí’.

Eu achei que fosse virar um livro familiar, eu ia imprimir, encadernar e dar para a família e para pessoas próximas. Então, por muito tempo, não foi o projeto de um livro comercial. Quando finalmente achei que tudo já estivesse escrito, veio a questão da busca das luvas adaptadas para que Giovanna pudesse cursar a faculdade de Medicina. É uma história que está no final do livro e que foi escrita sendo vivenciada. Escrever sobre esse episódio me ajudou a não enlouquecer durante essa busca que foi angustiante.

No livro “Sou a mãe dela” (Globo Livros), a autora Adriana Araújo narra sua vida de mãos dadas com sua menina, que nasceu com hemimelia fibular, uma síndrome congênita de causa desconhecida que a trouxe ao mundo sem um osso na perna e com apenas dois dedos na mão direita. Foto: Reprodução

Essa parte do livro causa angústia mesmo. Ver que todo o empenho da Giovanna para passar em um vestibular concorrido como o da Escola Paulista de Medicina poderia ser em vão porque ela não teria luvas adaptadas para sua mão, e você recebendo vários “nãos” de fabricantes…

Um ano depois de encontrar as luvas para ela (depois de muita busca, Adriana só recebeu o “sim’’ de um fabricante da Malásia), do nada, surgiu uma estudante de Medicina de Brasília, com uma mão muito parecida com a da Giovanna. A mãe dela procurou o mesmo fornecedor que me deu o primeiro ”não”, e ele deu todos os ”nãos” para ela também, argumentando que era difícil mudar um esquema de produção para atender uma única pessoa. Mas ele a aconselhou a buscar uma apresentadora de TV que o teria procurado um ano antes.

Essa mãe conseguiu falar com a Giovanna, nós nos conhecemos, e eu comecei a ajudá-la com as luvas. Primeiramente, via Malásia, onde consegui a primeira ajuda. Agora, elas estão sendo produzidas no Brasil, na mesma fábrica onde as da Giovanna são feitas. E quando vem essa mãe precisando da mesma coisa que precisei, entendi que minha jornada, que eu considerava particular, talvez não fosse tão particular assim. Eu pensava que só minha filha precisasse disso. Mas vi que talvez essa história deveria ser contada mesmo, já que outras pessoas precisam da mesma coisa.

Você frisa que nunca buscou a internet para falar sobre a história da Giovanna. Mas vendo que a trajetória que vocês viveram pode ajudar e inspirar outras pessoas, você repensa isso?

Quando minha filha nasceu, essa possibilidade não existia. E isso teve um lado positivo e negativo. Não ter a internet disponível foi uma dificuldade para buscar informações, para encontrar outras mães que passavam pela mesma situação e criar uma rede de apoio… Mas eu vejo um lado muito positivo nisso também. Eu me conectei plenamente com a Giovanna. Olhei só para mim e para ela, o que estabeleceu uma sintonia profunda entre a gente, uma conexão real, de saber traduzir as coisas pelo olhar. Às vezes, penso que a internet pode ser uma tentação à superexposição, à lástima, aos excessos.

Mas foi realmente a busca pelas luvas que me fez ver que era importante sair da nossa ilha. Giovanna não é a única menina com diferença no mundo. E desde que o livro foi publicado, essas conexões reais já estão acontecendo. Eu recebo mensagens diariamente. Vi uma mensagem de uma mãe que leu o livro e está no começo dessa jornada. Ela diz que se sentiu sentada ao meu lado, de mãos dadas comigo. E no começo de uma jornada como essa, ter alguém ao seu lado pra dar a mão é muito importante, faz diferença.

O que você diria para mães e pais que estão vivendo uma jornada parecida com a sua e enfrentando dificuldades?

É totalmente natural que uma grávida vá fazer o ultrassom, conte os dedos das mãos do bebê e fique tranquila vendo os dez dedinhos. É natural a mãe desejar um filho “normal”. Entendo que mães grávidas rezem e planejem filhos perfeitos, mas essa não é a realidade da maternidade. Uma frase que muitas mães de crianças com diferenças dizem é: ”Se você quer ter um filho perfeito, não tenha um filho”. Você não escolhe o filho que vai ter, você escolhe se quer ter o filho. E ele vem. E essa relação é tão profunda e linda que, se você estiver preparado pra ela, vai ser uma experiência extraordinária.

O livro não é um manual porque eu efetivamente não acredito em receitas. Minha conexão com minha filha é única. Eu a preparei para a vida adulta e ela me trouxe foco, aprendizado, resiliência. Esse livro pode dizer que cada um olhe e abrace o próprio filho como ele vem, e não da forma como foi planejado ou sonhado. Receber de braços abertos seu filho real é uma experiência de vida grandiosa. Muita gente fala da minha força. Acho que isso faz parte da minha personalidade, mas veio da Giovanna também, uma menina que tem demandas diferentes. Mas todos os filhos têm. Podem não ser diferenças visíveis, mas têm.

Como foi se dividir entre o papel de mãe e profissional? Em algum momento, você pensou em abrir mão da carreira para cuidar da Giovanna?

Logo que ela nasceu, no retorno da licença-maternidade, eu era repórter iniciante do ”Jornal Nacional”. Algumas pessoas, com o intuito de me ajudar, sugeriram que eu mudasse isso para ter uma rotina mais estabelecida. Porque muitas vezes eu tinha que pegar helicóptero, sair de Belo Horizonte… Mas sempre achei que podia ser mãe dela e repórter de TV. Não foi fácil conciliar tratamentos com logísticas da TV, viagem, mudanças de país. Houve um esforço meu e um esforço dela também para me acompanhar. Mesmo porque a maternidade não define uma mulher. Cada caso é um caso, e há mães que vão precisar fazer uma escolha.

Giovanna em foto da infância. A filha de Adriana Araújo, que nasceu com hemimelia fibular, uma síndrome congênita de causa desconhecida que a trouxe ao mundo sem um osso na perna e com apenas dois dedos na mão direita. Foto: Arquivo Pessoal

O mais importante é que as mulheres precisam de apoio. Quando você está grávida e sabe que vai ter um filho com diferença, sente muitas coisas que eu senti. O preconceito no olhar, o excesso de compaixão, ou as frases de cobrança: “O que será que ela fez de errado para a criança nascer assim?”. “Como é que vai resolver isso agora?”‘. Muitas vezes esquecem que a criança tem pai também, já que os olhares recaem mais sobre as mães. Você escuta coisas no consultório, dentro da própria família… Todas essas mães precisam de apoio! Mães de crianças que nascem com diferença precisam de respeito, afeto e carinho, para passar para a criança todo afeto que existe dentro dela.

Às vezes, o preconceito é tão forte que a mãe tem até dificuldade de encontrar esse amor dentro dela, tem dificuldade para acolher aquele filho. Além de tudo isso, tem a questão financeira. Poucas capitais no Brasil tem especialista pelo SUS. E quando tem, muitas vezes passa do prazo indicado para fazer a cirurgia. Meu livro é de gratidão. Porque ainda que tenhamos ouvido muita coisa ruim, eu recebi muita ajuda, muitas mãos estendidas.

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Como você tem visto mudanças para construir um mundo mais inclusivo?

As vozes de pessoas que vivenciam essa realidade estão reverberando. Ainda que eu veja a discriminação, sou otimista. Muitas vezes, o ”coitadinha” vem pelo fato de as pessoas nunca terem refletido sobre a situação. Mas acho que as pessoas estão começando a olhar para essa questão com mais respeito, mais humanidade. Ninguém sabe o dia de amanhã, você pode adquirir uma deficiência, alguma circunstância da vida pode colocar você numa situação de se readaptar. O mundo não tem que pensar nessas pessoas como exceção. Não existe exceção quando falamos de 1 bilhão de pessoas. Minha filha é uma em 1 bilhão.

Mas no dia a dia, houve avanços ou ainda estamos engatinhando?

São poucos os avanços, mas sinto mais pessoas interessadas em ouvir. Não sou a otimista ingênua. Vamos demorar para resolver muitas questões, mas vejo mais pessoas interessadas nessa realidade. Giovanna nasceu em 1997. Agora, em 2020, uma mãe me escreve dizendo que só encontra artigo em inglês sobre o assunto, que o médico pediu para ela voltar com o bebê dali a cinco anos… Se você olhar as conquistas reais, estamos engatinhando. O sistema público de saúde precisa olhar a diferença física e intelectual com muito mais atenção do que é feito hoje. Mas vejo pessoas se conectando com a causa, mesmo que não tenham vivido isso em casa. Você não precisa ter uma diferença para lutar por um mundo inclusivo.

E depois da resistência inicial de Giovanna, o que ela tem achado da repercussão do livro agora?

Descobrimos uma médica ginecologista cirurgiã que não tem uma das mãos, a esquerda, parecido com o caso da Giovanna. Uma pessoa leu o livro e passou o contato dessa médica para minha filha. E Giovana ficou encantada! Vejam como a inspiração é importante. Nós estamos dando isso e recebendo isso. O olho da Giovana brilha. É importante ela ver que outras médicas trilharam esse caminho.

A jornalista Adriana Araújo Foto: Victor Affaro / Divulgação

Não sou ingênua de pensar que está tudo resolvido. Agora, ela tem uma jornada individual, de se sentir segura como médica na especialidade que ela escolher, passar segurança para os pacientes mesmo tendo uma mão com dois dedos. Ela vai se apresentar aos pacientes e nem todos compreenderão de cara a diferença dela, mas ela vai ter que vivenciar isso.

Durante muito tempo, não poder trocar de lugar com ela foi uma dor para mim. Mas há dores que seu filho tem que viver. Eu jamais vou sentir sobre mim o olhar do preconceito, de desconfiança, como ela sente sobre ela. Agora, ela vai criar o caminho dela para lidar com tudo. E hoje entendo isso plenamente. Ela se deparar com histórias de outras pessoas a ajuda a colocar tijolos na estrada que ela está pavimentando.

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