por Dulci Lima • em 11 jul, 2014 • 10
(Blogueiras Negras)
“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.”
bell hooks
A frase no início do texto é da escritora negra norte-americana bell hooks e embora se refira ao contexto daquele país se aplica perfeitamente a realidade das mulheres negras brasileiras. De acordo com o Censo 2010, 52,89% das mulheres solteiras no Brasil são negras. O mesmo Censo aponta que as mulheres negras são as que menos se casam e as mais propensas ao “celibato definitivo” (FREITAS, 2014).
O fenômeno já rendeu estudos como os de Ana Claudia Pacheco (“Branca para casar, mulata para f…, negra para trabalhar”: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia) e Claudete Alves (Virou regra?). Frutos de entrevistas e observações, os estudos aprofundam o que o Censo 2010 aponta através da pesquisa quantitativa: mulheres negras tem menos possibilidades no mercado afetivo.
A mulher negra enfrenta a solidão independente do extrato social. Não se trata de uma exceção, é a regra, um sintoma histórico que indica um comportamento real, as mulheres negras não têm (em sua grande maioria) a experiência do amor (FREITAS apud ALVES, 2010).
O tema é assunto recorrente nos círculos de mulheres negras, desde as rodas de conversa informais entre amigas até entre as feministas negras. Por aqui já foi discutido em textos como o de Mabia Barros, Síndrome de Cirilo e a solidão da mulher negra, que trata a questão a partir da aparente “preferência” dos homens negros pelas mulheres brancas. Ana Claudia Pacheco (2008) afirma que essa situação é recorrente mesmo entre ativistas dos movimentos negros. A aparente “preferência” dos homens negros pelas mulheres brancas estaria relacionada à ideia de que um relacionamento nesses moldes proporcionaria um esmaecimento das fronteiras raciais e, portanto, maior mobilidade social.
A afetividade da mulher negra também foi abordada recentemente no espetáculo Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas da Cia. teatral Os Crespos – texto de Cidinha da Silva. O drama é resultado de uma pesquisa realizada com 55 mulheres negras provenientes de camadas sociais distintas, graus de instrução e atividades profissionais variadas que foram solicitadas a falar a partir de suas experiências pessoais sobre temas como sexo, relacionamentos afetivos, violência etc. Segundo o co-diretor do espetáculo, a afetividade da população negra deve ser tratada como uma questão de saúde emocional:
A arte tem como dever do presente inserir temáticas caras à nossa sociabilidade negra e pensar que nossa saúde emocional é tão importante quanto todas as outras inserções (Sidney Santiago – Cia. Os Crespos In: FREITAS, 2014).
As mulheres negras são ainda as mais prejudicadas em outros segmentos como aponta o Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (2013) desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. O racismo e sexismo a que estão submetidas perpetuam desigualdades e criam barreiras no acesso a direitos e oportunidades.
Segundo o Dossiê, em 2009 as mulheres negras correspondiam a aproximadamente um quarto da população brasileira, portanto, quase 50 milhões de mulheres. De acordo com a pesquisa, as desigualdades entre brancos e negros no acesso ao ensino superior, oportunidades no mercado de trabalho e outros vem se mantendo. Apesar do aumento no número de negros e negras no ensino superior (proporcionado por políticas públicas), a pesquisa demonstra que os cursos a que essa população vem tendo acesso são os de menor prestígio e que alcançam menor remuneração no mercado de trabalho. Mas, a maior parcela da população negra feminina economicamente ativa segue ocupando postos no serviço doméstico. A pesquisa do IPEA confirma a manutenção das mulheres negras na última posição do ranking salarial (1. Homens brancos; 2. Mulheres brancas; 3. Homens negros; 4. Mulheres negras).
Muitos dos estudos apresentados informam que, além de haver um diferencial de raça e gênero, a combinação destes atributos leva a uma considerável desvantagem deste grupo no que diz respeito à sua forma de inserção no mercado de trabalho e, principalmente, às disparidades de rendimentos.
As mulheres negras são ainda, segundo a pesquisa IPEA, as mais vitimizadas pela violência doméstica. Jackeline Romio (2013) ao analisar os dados sobre violência contra a mulher negra destaca como aspectos que impulsionam as agressões contra essas mulheres a “exploração da sua imagem pela mídia nacional como objetos sexuais, […]; propagandas em que são vistas como produto sexual e nacional a ser consumido […] – imagem da mulata e o carnaval […]”.
Todos os dados apresentados anteriormente demonstram a situação de vulnerabilidade a que estão submetidas as mulheres negras no Brasil. O binômio sexismo e racismo (poderíamos acrescentar ainda o critério de classe) enraizados na sociedade brasileira se materializam em obstáculos que tornam o cotidiano dessas mulheres um verdadeiro campo de batalha. A maior parte dos estudos sobre mulheres negras se debruçam sobre os aspectos materiais de suas vidas e pouco aludem ao universo subjetivo, ao sensível. Os estudos e discussões sobre a saúde da população negra e da mulher negra particularmente tratam das questões do corpo, mas não se ocupam de analisar a saúde emocional dessa população (são raros os estudos acerca da relação entre racismo e adoecimento emocional da população negra).
Para uns, falar de amor tornou-se piegas; para outros, pensar e falar sobre afetividade e experiência do amor dentro do segmento afrofeminino ganha conotação “rancorosa” e vitimizada. Contudo, são anos de silêncio, submissão e incompreensão das relações. “Quanto mais quebramos o silêncio, mais vamos nos empoderando e mudando o que está posto historicamente”, afirma Flavia Rosa (FREITAS, 2014).
O tema afetividade não alude apenas às relações conjugais, mas também às relações familiares e os laços de amizade. Todos esses aspectos carecem de estudos no que concerne à população negra. A abordagem da afetividade seja através de ações e práticas sócio-culturais ou educacionais é fundamental no processo de empoderamento e fortalecimento da auto-estima das mulheres negras.
À medida que essa mulher se empodera e encontra histórias iguais à dela, a solidão perde a conotação de dor e passa a ser sinônimo de liberdade, ou, […], um ato politico e curativo. “O corpo ressignifica esse processo com a autoestima. A corporalidade pode ser revista e traz uma reconstrução da autoimagem. São mulheres que têm algo em comum, mas não são todas iguais”, explica Ana Claudia Lemos Pacheco. “A saída é um empoderamento da mulher negra, lembremos que somos nós que educamos esses homens e que alguns estereótipos precisam deixar de ser reafirmados por nós, mulheres negras. É a nossa verdade, quando a mulher negra fala, incomoda e gera o inconformismo”, reitera Claudete Alves (FREITAS, 2014).
Os espaços de encontro, discussão e expressão das experiências afetivas das mulheres negras ainda são restritos. Iniciativas como a das Blogueiras Negras são fundamentais para alargar esses espaços e propiciar às mulheres a possibilidade de trabalhar suas questões afetivas e cuidar de sua saúde emocional através do encontro, compartilhamento de experiências e da sonoridade.
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